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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

The MAD Kitchen: Loucura à mesa

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O nome não lhe podia assentar melhor, a esta empresa de catering que é muito mais do que uma empresa de catering. É que “Mad Kitchen”, para quem tenha faltado às aulas de inglês, significa “Cozinha Louca”, e a verdade é que é loucura o que ali se faz. Loucura servida em pratos de fina porcelana, loucura no espetáculo que antecede, que acompanha e que finaliza cada refeição, loucura na experiência que cada um vive quando contrata esta empresa de catering que é muito mais do que uma empresa de catering. O que eles fazem é teatro, é dança, é disrupção, é uma mise-en-scène que nunca mais se esquece. E, apesar de todo o show inerente a um evento criado por estes enfeitiçadores gastronómicos, sobressai um detalhe que, tratando-se de comida, é muito mais que um detalhe. Na verdade, é o ponto principal: é que a comida que é servida com loucura e extravagância, é sublime.

Mas Mad não se refere apenas a esta loucura saudável. Em bom rigor, quando registaram o nome, num primeiro momento, os três sócios nem se aperceberam que a junção das três iniciais dos seus nomes dava origem à (apropriada) palavra inglesa. É que MAD é a junção dos nomes Marcelo, Angel e Dhimant.

A história destas três almas que se encontraram e cujos caminhos (em boa hora) se cruzaram é longa e – confesso – não foi fácil acompanhar o discurso rápido de Angel Reyes, do Equador, que fala ao ritmo a que as ideias surgem, ou seja, a uma velocidade supersónica. A letra dos meus apontamentos, no caderno que levei, revela a pressa com que quis apanhar tudo. Perceber os meus próprios gatafunhos foi um desafio que não tem outra explicação que não a tal “madness” deste pessoal, que nasceu para idealizar momentos que não se esquecem, e que, por isso, tem o cérebro a fervilhar.

Angel já trabalhou em muitos restaurantes de topo, em muitos países. “Há 22 anos, tive a sorte de vir a Portugal, trabalhei durante 7 anos no Ritz-Carlton. Mas passei por Israel, pelas Ilhas Canárias, Barcelona... já nem sei!”

Foi no Penha Longa que conheceu o Marcelo, que era seu estagiário, e daí nasceu uma amizade sólida como uma rocha. Quando foi convidado para ir para Londres, para o Sushi Samba, na London Heron Tower, Angel levou Marcelo consigo. Seguiu-se o galardoado com 2 estrelas Michelin Mandarin Oriental, também em Londres, para onde foram ambos, e depois vieram para Lisboa, porque Angel veio abrir o SUD. Foi no SUD que Angel teve a sorte de conhecer o Dhimant, que tinha o Passage to Índia, que é simultaneamente um restaurante e uma empresa de catering. “Eu contratava o Dhimante para me fornecer as especiarias indianas para os meus pratos. E assim começou mais uma amizade.”

Mas há um quarto elemento nesta tríade, que, assim sendo vira uma tétrade. Raquel Rua. Contratada para o SUD para a parte dos eventos, é um furacão e, diz quem a conhece, que vende pentes a carecas. A frase anterior só peca porque, mais do que vender, do que ela gosta verdadeiramente é de vender comida. De pôr tudo a mexer. De produzir. De comandar a orquestra, como um maestro. Dêem-lhe eventos com 600, 1200 pessoas, e ela está lá, a certificar-se de que tudo corre milimetricamente como previsto.

Bom, mas e então, quando é que surge a The MAD Kitchen? Surge em Janeiro de 2020, que foi, se a memória não vos falhar, possivelmente o pior timing da História para abrir uma empresa de catering. É que em Março rebenta uma pandemia à escala global. Eventos com dezenas, centenas de pessoas? Nem pensar. Restaurantes fechados, pessoas fechadas em casa, teletrabalho, telescola.. enfim, todos estamos bem lembrados, infelizmente.

Mas os sócios e a sua diretora de vendas não perderam a calma. Angel explica: “A pandemia deu-nos tempo para pensar e estruturar as coisas com calma, que é algo que as empresas nunca têm, ao início. As empresas nunca têm 6 meses sem trabalho para se preparar para o trabalho. Nós tivemos.” É uma maneira de ver as coisas. Aquela maneira do “copo meio cheio”, ou não fossem eles “mad” people.

A verdade é que são loucos, mas não são parvos. E rapidamente começaram a pensar numa forma de dar a volta “ao texto”. Assim que as coisas abriram um pouco, permitindo pequenos encontros, tiveram a ideia de criar a Madness Table. Aproveitando a mega(lómana) cozinha que montaram no Sítio do Alto de São João (o centro de escritórios, que está espalhado por toda a Lisboa, no Porto e em Setúbal), e que custou 150 mil euros, começaram a dar jantares para um mínimo de 10 pessoas e um máximo de 24 (o ideal é ficar ali pelas 18). Mas não são bem jantares... são, uma vez mais, “experiências”. Há um menu de 7 pratos que chegam com músicas diferentes, e há fumo, e há pérolas que explodem na boca, e de repente é como se houvesse fogo de artifício dentro da caixa craniana. Estes eventos são para amigos, para empresas, jantares de Natal. Cada refeição demora três horas, três horas e meia, e tem o valor de 125€ por pessoa.

Acreditem quando vos digo: não é muito. Porque é comida, mas é espectáculo incluído. Para terem uma ideia, estes meninos só trabalham com as melhores loiças (Montgolfier, Pordansa, Vista Alegre, Farje de Lagiole), as melhores facas, os mais afamados tachos. A pedra para afiar facas custou 500€. Por um rechaud pagaram 2700€. Há pratos debruados a ouro, e não é ouro no sentido de um dourado qualquer a imitar ouro. É ouro. Cada prato desses custa 160€ e eles compraram muitos.

Durante uns meses safaram-se assim, com estes jantares. E no dia 3 de Setembro de 2020 fizeram a inauguração. Para 380 pessoas. “Transformámos o Sítio numa galeria de arte. Mandámos vir uma máquina de Itália, chamada Vitória, que parece uma máquina de costura mas é uma fiambreira. Mas queríamos mais!” – exclama Angel, perante o revirar de olhos da Raquel, que ainda tem bem presente no sistema nervoso central a loucura daqueles dias. “Mandámos vir uma empilhadora. A ideia era colocar a Vitória em cima da empilhadora e o chef estar lá no alto, a cortar a charcutaria, e depois descer para se servir.”

Na véspera do evento, chegou a empilhadora, num reboque. Acontece que o sítio da descarga fica num plano muito inclinado, o reboque não ficou bem travado e deslizou pela rampa indo espatifar-se na parede em frente. Reboque desfeito, empilhadora desfeita, a horas de começar o grande evento. Nem assim o louco Angel desanimou. “Ah não tenho empilhadora? Não faz mal. Juntámos paletes com 2 metros de altura com chefs a esticarem massa fresca. Havia um aquário com peixinhos de verdade a nadar e um túnel de sushi a sair do aquário. Foi uma verdadeira loucura! Um sucesso.”

Além dos jantares “Madness Table”, criaram, em parceria com a Fadus (organização de eventos), os Dali Dinners. Se acharam que 125€ por pessoa para a experiência Madness Table era muito, é melhor segurarem-se à cadeira. Aqui falamos de 799€ por pessoa. “Mas, para que se perceba, num jantar para 10, são precisas 37 pessoas a trabalhar durante dois dias. A mesa muda a meio do jantar e o espaço transforma-se num casino. Cada prato é uma roleta... enfim, a produção é brutal.”

Para a The MAD Kitchen não há limites, há canapés servidos em gaiolas, tabuleiros que parecem jardins, tubos de laboratório de onde sai fumo a ornamentar uma mesa, empregados a servir montados em monociclos. Pode haver um toque de burlesco, pode haver dança, magia, tudo ao mesmo tempo. E são todos estes estímulos sensoriais que vão fazer com que uma refeição se torne um momento verdadeiramente inesquecível.

Para ajudar a criar todos estes cenários, a The MAD Kitchen contou com o Martins Alves, que foi um “dinossauro” da decoração em Portugal, e que morreu há pouco tempo. “Era tão louco como o Angel. Tinha um armazém em Mafra, que ainda existe e está a ser gerido pelo filho, com tudo o que se possa imaginar. Tudo. Cadeiras de época, chapéus, bengalas, gaiolas, plumas, grafonolas... é imaginar uma coisa – está lá. De maneira que, estas duas almas juntas, estes dois loucos juntos... só podiam criar a exuberância perfeita”, diz Raquel, com um sorriso que é de admiração mas também muito cansaço – “passamos a vida a discutir, não se pense que é fácil”.

O Sítio encaixa como uma luva neste conceito, que é moderno, urbano, disruptivo, extravagante. A cozinha agora serve, não só para fazer jantares “Madness Table”, como também para provas: “Imagine uma empresa que quer fazer um evento para 2500 pessoas. Ou uns noivos, que querem que façamos o casamento. Combinamos um dia e fazemos aqui a prova. É raro não saírem daqui rendidos. E mesmo os que vinham com a ideia de ficar pelo valor mais baixo entre os que temos, invariavelmente acabam tão esmagados com as versões superiores que as escolhem. Porque sabem que vai fazer a diferença.”

E é isto, mais coisa menos coisa. E são meus vizinhos. Trabalham mesmo ali tão perto que acontece a magia cruzar-se comigo no corredor. De vez em quando é vê-los passar com coisas fumegantes e lindas, que até custa comer. No outro dia, apareceram num dos meus encontros do Clube de Leitura, com a tal pérola que explode na boca, e que deixou todos os participantes em êxtase. O outro diria que “isto é gozar com quem trabalha”. Eu acho que isto é ter um enorme gozo a trabalhar. E é um privilégio assistir, na porta ao lado.

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Perfil: Iva Viana

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Nota prévia: entrevistei a Iva Viana antes do Verão. Nessa altura ainda não tinha 40 anos, pode acontecer que, entretanto, já os tenha feito, que esta entrevistadeira atrapalha-se em afazeres e, por vezes, leva mais tempo que o desejável a publicar as histórias que tem em carteira. Uma coisa importante já aconteceu, entre a entrevista e a publicação do respectivo texto: a entrevistada casou com o namorado de há 18 anos. A vida não espera por textos que levam tempo a sair.

Feita a nota e deixado o pedido de desculpas pelo atraso, aqui segue o relato de vida desta mulher (abreviado, claro está), uma vida que merece ser contada e conhecida (conhecida já ela é, e não é pouco, mas talvez haja ainda quem ande por aqui e não conheça ainda).

Chama-se, então, Iva Viana, nasceu em Viana do Castelo, e é a mais nova de 2 irmãos, se bem que se sente como se fosse a mais velha: “Sou eu que tomo conta de todos”.

É artista e nem sabe de onde lhe veio a veia. Filha de uma contabilista e de um motorista, decidiu dedicar-se a algo que rima com a profissão dos pais, mas que nada tem que ver com nenhuma delas. Apesar de ser atleta de alta competição (pertencia à Selecção Nacional de Remo), nunca lhe passou pela cabeça seguir Medicina ou Arquitectura, que é o que geralmente segue quem leva na bagagem esse estatuto desportivo (aproveitando a maior facilidade na entrada na Universidade). “Quero ir para Belas-Artes”. Talvez a culpa tenha sido do professor Manuel Rocha, que era escultor. “Ele levou-nos a ver as esculturas que fazia e eu fiquei fascinada. Vi uma escultura de 5 metros a ser modelada e acho que se fez aqui um clique.” Houve também a professora Lucinda Mata, que trabalhava o barro, e tudo aquilo desembocava num lugar feliz do seu imaginário, ainda que não o soubesse completamente, ainda que não tivesse plena consciência de que já estava em pleno processo de digestão vocacional.

Os pais podiam ter pigarreado, ter-lhe pedido que se sentasse um pouco com eles na sala, talvez sugerido que pensasse melhor, que as saídas profissionais, que enfim, Belas Artes... mas nada disso. Sempre quiseram que fosse feliz e, nesse desejo, nunca sobejou a pergunta ou a semente da dúvida. “São os meus pilares e eu sei que a minha felicidade é a deles também. Eu sei que isto é, em geral, o que acontece com os pais, mas os meus nunca tentaram interferir mesmo que fosse ‘para o meu bem’. Somos muito unidos e acho que eles sempre souberam que ‘o meu bem’ era escolher o que me fazia sentido.”

Iva Viana foi para o Porto tirar Belas Artes mas a faculdade não foi de todo o que estava à espera. O discurso é aquele que já quase todos ouvimos aqui e além: muita teoria, pouca prática, demasiada conversa, muito menos acção. “Saí da faculdade a dizer que não queria ser escultora. Acabei a ir trabalhar para uma empresa francesa e modelava o que me chegava às mãos. Ali não havia a parte criativa, era só mesmo executar, mas aprendi tudo sobre a técnica de estuque e foi aí que me apaixonei. Trabalhei sempre com a mesma paixão mas, ao fim de seis anos, e com a ajuda dos meus pais, senti que tinha mesmo de me despedir.”

Saiu e criou o seu atelier. Teve sorte (será sorte?) e assinou um contrato para uma obra mal se despediu. E nunca mais parou. Odeia que a chamem de ceramista. Não tem nada contra os ceramistas mas é como chamar poeta a um escritor de prosa, ou arquiteto a um engenheiro. Iva Viana trabalha o gesso. É essa a sua matéria-prima. E é ela que faz tudo: os desenhos, os moldes de silicone, e depois o resto: o gesso dentro do molde, a secagem, a pintura (haverá mais passos mas ela deve perdoar a falta de conhecimento profundo). Mas, porque o trabalho é mais que muito, tem o apoio de um ajudante, a meio tempo.

Tem modelos mais comerciais – as suas flores vendem como pãezinhos quentes – e não lhe caem os parentes na lama de os fazer e repetir e tornar a fazer e voltar a refazer. Dão dinheiro, mesmo sendo mais baratos do que as grandes obras, mas são aquele pinga-pinga que não se pode descurar (e são lindas, as flores, que diabo). Desde há um ano tem, até, a decorrer um projecto muito interessante, em que os reclusos de Viana do Castelo fazem as flores mais pequenas. “É bonito porque lhes permite ter uma ocupação, é gratificante, e tem aquela vertente social que faz a diferença quando se está preso.”

Mas do que ela gosta mesmo, aquilo que dá mesmo gozo são os projectos que permitem criar, voar, que lhe tiram o sono porque a elevam do chão, nas asas do sonho que pode converter em realidade. “Criar peças especificamente para um cliente, apenas com algumas orientações ou com ‘carta branca’ dá um gozo bestial. É isso que me faz mesmo feliz e que vai ao encontro daquilo que comecei por desejar, quando disse que queria seguir Belas Artes. Por vezes sou consultada por arquitectos e designers de interiores que querem que eu concretize as suas ideias, mas eu quero ter uma participação criativa. É aí que eu vibro e me supero.”

E encomendas não faltam. Restaurantes, hotéis, empresas, prédios que sofrem remodelações totais, tem sido uma loucura de encomendas, a crise não chegou nunca a bater-lhe à porta. Os pedidos do estrangeiro são mais que muitos, também: “Ainda ontem tive uma reunião online com o Dubai. E tenho peças a sair para todo o mundo.” Iva Viana, artista plástica portuguesa, a espalhar magia pelo planeta.

Uma das suas últimas obras grandes em Portugal foi o edifício Ivens Arte, uma recuperação de um edifício na Rua Ivens, no Chiado, em Lisboa. “Coube-me a criação de 10 tectos, neste belíssimo projecto de Samuel Torres Carvalho. Uma obra que demorou 4 anos. E agora estou a trabalhar, entre outros, num projecto aqui para Viana, que são 4 fachadas de 8 por 3 metros. Vão ficar viradas para o rio Lima, e acho que vai ser emocionante ter assim uma obra na minha terra, num espaço público. De resto... quero continuar a fazer a minha arte, no meu atelier, até ter uns 90 anos ou mais.” Por mim acho excelente. Pode ser que, assim, me dê tempo para conseguir encomendar-lhe um trabalho para a casa que ainda não desisti de comprar.

https://ivavianaescultura.com

https://www.instagram.com/iva.viana_sculpture/ 

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Rogério Samora: 1958-2021 (entrevista feita em 2000)

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Conhecemo-nos quando eu trabalhava no DNA (para quem não sabe, foi um suplemento extraordinário do Diário de Notícias). Convidei-o para uma rubrica, passámos um dia juntos e, depois, voltei a sugerir o seu nome, passado um tempo, para lhe fazer a grande entrevista do suplemento. Voltámos a passar um dia juntos, em casa dele. Fomos às compras, fiz com ele algumas das coisas que faziam parte da sua rotina pouco rotineira, almoçámos, jantámos, e só nos despedimos já era tarde, noite dentro. 

Depois desse dia, já lá vão vinte anos, ficámos próximos durante algum tempo. Mas depois cada vez menos. E agora já não nos falávamos há muito.

Hoje o Rogério partiu, apesar de, na verdade, já ter partido há uns meses. Sei que teria preferido ir-se logo, de uma vez, porque este estado em que se encontrava não serve a ninguém, muito menos a alguém como ele. Tenho várias memórias do Samora, e até coisas a que me apresentou. Uma delas foi o fabuloso álbum Felt Mountain, dos Goldfrapp, que ainda hoje me acompanha. Neste precisamente é o que estou a escutar, e o que ouvi toda a tarde, em que estive a passar esta entrevista do papel para o computador. O podcast ia ser trabalhado hoje mas... que se lixe, fica para amanhã.

Esta foi a entrevista que lhe fiz, no ano 2000. 

Até um dia, Rogério (se bem que ele não acreditava em reencontros no além e eu, para ser honesta, também não).

 

Entrevista: Sónia Morais Santos

Fotografia: Augusto Brázio

 

Começou por ser uma entrevista como todas as outras. Um telefonema, uma mensagem deixada no gravador de mensagens, "Fala a Sónia, do DNA, gostava de te entrevistar, liga-me assim que puderes, obrigada." Depois foi o encontro, marcado numa bomba de gasolina na auto-estrada de Cascais. "Deixas lá o carro e depois vamos no meu", e a seguir, a viagem até uma aldeia perto de Colares, curva contra curva sob um intenso nevoeiro, "Já viste isto? É uma vergonha esta estrada estar assim, sem traços, nem se percebe onde é que a estrada acaba, há acidentes todos os dias, mas ninguém se rala com isso."

Começou por ser uma entrevista como todas as outras. Na casa do entrevistado, como tantas. Acompanhada com chá de tília, eucalipto e menta, e pão de ló com calda. Seguida de perto pela chuva que insistia em bater nas vidraças. Aconchegada por uma lareira quente.

Rogério Samora tem 42 anos de vida. Há mais de vinte que anda empoleirado em palcos e projectado em telas e metido dentro das televisões de todos nós.Tantos anos a construir sonhos têm a vantagem de o transformar numa pessoa numa pessoa com quem vale a pena conversar uma tarde inteira. Ou um dia inteiro. Tantos anos a criar ilusões têm, por outro lado, a desvantagem de o tornar demasiado desperto para as crueldades da vida. Da vida real, essa mesmo, que se vive fora da sala escura do cinema. E é por isso mesmo que, às vezes, é raiva, é angústia, é desilusão o que lhe vai lá dentro. E é também por isso que esta entrevista, que começou como todas as outras, não foi como todas as outras.

Rogério Samora é actor. Isso basta-lhe para viver e ser feliz. Pelo menos enquanto constrói sonhos, esquece as crueldades da vida. Deve ser por isso que constrói tantos.

 

Proponho que comecemos por falar de um fenómeno recente. Por que é que, hoje em dia, todos os miúdos a quem se pergunta o que querem ser quando forem grandes, respondem, invariavelmente, que querem ser actores?

- O ser humano tem uma necessidade de ser conhecido publicamente. É uma forma de poder. Ter dinheiro e ser conhecido são sinónimos de poder. E os miúdos acham que ser actor é uma profissão fácil, ganha-se dinheiro depressa, e é-se conhecido rapidamente. Esquecem-se que se vive pouco. Trabalha-se muito. Morre-se cedo.

 

Mas há outro fenómeno que contradiz essa tua teoria, que é: apresentadores de televisão e manequins, que já eram conhecidos e já ganhavam muito dinheiro, a quererem ser actores. O que é que os motiva, a esses?

- É o pensar: "É tão bom, por momentos, poder ser outra pessoa. É tão bom, por momentos, ter coragem para fazer ou dizer outras coisas que eu não tenho coragem. É tão bom ser amado. É tão bom ser admirado." Para essas pessoas é isso. E depois é assim: todos nós temos um pouco de loucos e de actores. Tu quando te vestes e te maquilhas, de manhã, estás a exacerbar o teu lado de actriz. Tu vais representar...

 

Sim, mas o texto é da minha autoria... não digo textos de outras pessoas. Sou sempre eu.

- Ah, mas eles também! Eles representam-se a si próprios... Achas que a Catarina Furtado alguma vez representou uma personagem? Ela faz dela. Faz sempre dela. Tanto que - é engraçado! - todas as personagens têm o sinal no mesmo sítio! Os sinais tapam-se com maquilhagem.

 

Essas pessoas - apresentadores e manequins - ganham mais do que os actores, por trazerem consigo o peso de ouro da popularidade, ou não?

- Não. Não. Esses são tão estúpidos que nem sequer percebem isso. Podiam ganhar o dobro do que ganham. Mas eles só querem é sair nas capas das revistas. É tão fácil, nos dias que correm, ser capa de revista. A minha profissão, neste momento, está ao nível de empregada de balcão.

 

Isso é verdade. Antigamente, para se ser capa de revista era preciso ter-se construído alguma coisa, ter obra feita. Agora basta viver numa casa com câmaras de televisão por todos os lados. Não é preciso mais nada para ser capa de revista...

- Sabes que eu, depois de ver o Otelo Saraiva de Carvalho naquele vídeo-clip, já nem falo do Big Brother. Porque já foi além do Big Brother. Tu viste aquilo?

 

Vi.

- E choraste?

 

Não diria tanto.

- Pois eu não sabia se havia de rir, se havia de chorar. Quando aquilo começou, ainda pensei que fossem fazer qualquer coisa tipo "A revolução foi um acto de amor". E aí eu compreendia, por muito discutível que o vídeo fosse em termos de gosto. Agora "A revolução falhou"?

 

O que é que achas que lhe passou pela cabeça?

- Acho que está senil. Que não pensou no que estava a fazer. Não sei se lhe pagaram, espero que não tenham pago. Se lhe pagaram, é porque está com dificuldades financeiras e precisava do dinheiro. Ou então é um inconsciente. E, se assim for, temos que pensar se o 25 de Abril não terá sido, também, um acto de inconsciência.

 

De todas as opções que se põem, a menos má para nós que vimos o vídeo-clip é, ainda assim, a que dá o senhor como senil.

- É. Ainda é o menos mau. No sentido em que também nós, com a idade, podemos vir a passar por esse problema. Mas eu ainda considero uma outra possibilidade, sabes? Ele pode ter querido vingar-se do filme "Capitães de Abril". Pode ter querido dizer: "Fui eu que fiz o 25 de Abril, não foi o Salgueiro Maia". Seja como for, acho que nós, portugueses, devíamos processá-lo. A sério! Devíamos metê-lo em tribunal. O Otelo fez muitas coisas com as quais eu não concordo. Mas é uma figura emblemática daquele dia. É um nome, uma referência. Era um ídolo. E não se despiu, porra! A audiência feminina tinha subido muito.

 

Dormiste mal nessa noite...

- Dormi, dormi. Fiquei mal disposto. Era uma e meia da manhã e ainda aí estaca sentado, de boca aberta.

 

Vamos, então, mudar de assunto. Nasceste em Lisboa?

- Não. Nasci na Amadora, em casa, assistido por uma parteira, e a minha avó disse: "Traz já o menino para Lisboa, porque aí não há nada!" E eu vim logo de táxi, em direcção a Lisboa, muito embrulhadinho, para casa da minha avó, com quem fui criado até aos sete anos.

 

Porquê?

- Porque os meus pais, de facto, não tinham condições para me criar. Estavam a construir a sua vida... A minha avó não vivia com tantas dificuldades, se calhar acharam que era melhor para mim ir viver com ela. Depois, aos sete anos, organizaram-se financeiramente e eu fui viver com eles.

 

Fala-me dos teus pais.

- São uns excelentes pais, sempre foram. Nunca passei fome, o meu pai sempre se preocupou em alimentar-nos, em trabalhar para que não nos faltasse nada. Só lhes posso agradecer por não me terem imposto nada. Nenhuma orientação, nem religiosa, nem política, nem profissional, nem sexual. Deram-me a liberdade de escolher o meu caminho.

 

O que é que eles faziam?

- A minha mãe trabalhava numa tabacaria no Café Califórnia - que hoje é um bar -, mas quando eu nasci deixou de trabalhar. O meu pai trabalhava no Laboratório Normal, em Lisboa, que depois se mudou para Mem-Martins. É um grande homem, o meu pai. Começou a trabalhar aos 13 anos, foi um auto-didacta. Com muito trabalho conseguiu chegar a preparador. Respeito-o muitíssimo porque a vida não lhe foi fácil. Hoje consigo percebê-lo.

 

Hoje?

- Quando era miúdo e pedia ao meu pai uns sapatos, ele dizia-me "Com a tua idade andava com uns sapatos de corda e era eu que os fazia". Na altura não o compreendia. Hoje compreendo.

 

Achas que foste um mau filho?

- Acho que fui um filho rebelde e às vezes parvo. Tenho pena de não ter convivido mais com o meu pai. Porque era moda ser rebelde, ser contra o pai. No outro dia fomos jantar todos, era o aniversário da minha mãe. E de repente dei comigo, aos 42 anos - eles têm 62 -, a preocupar-me com o que estavam a comer: os molhos, os fritos, as gorduras... Sabes o que é que eles fizeram? Olharam para mim e encolheram os ombros. Não ligaram nenhuma. Os papeis invertem-se, é engraçado.

 

E a tua avó?

- A minha avó talvez seja a pessoa por quem eu tenho mais carinho. Não quer dizer que goste mais dela do que dos meus pais! Gosto de forma diferente de cada um, gostando dos três, muito. Chama-se Lurdes, a minha avó, e faz-me pena estar envelhecida. Faz-me pena que, quando está doente, vá para a Caixa de Providência às sete da manhã para arranjar uma consulta. Eu podia pagar-lhe uma consulta privada ou levá-la a um hospital particular. Mas ela prefere ir para a Caixa, o que é que eu hei-de fazer? "É caro, filho, é caro, é caro!" A minha avó... Devia vê-la mais! No outro dia telefonou-me e disse-me: "Oh neto, já não te vejo há tanto tempo que já não me lembro da tua cara!"

 

Há quanto tempo é que não a vês?

- Aí há uns três ou quatro meses. Mas faz-me tanta pena vê-la assim... Faz-me impressão. Era tão bonita. Ainda é. Está é toda torta, coitadinha.

 

É bom que arranjes tempo para a visitares. Porque depois ficas arrependido para sempre...

- Sabes, eu tenho uma relação com a morte muito especial. Isto, se calhar, é um pouco cruel mas eu já resolvi a morte na minha cabeça. Aceito-a. Todos nós temos que ter consciência de que vamos morrer. Isso faz-nos viver melhor. Os nossos amigos morrem. Os nossos familiares morrem. O pai e a mãe morrem. Eu aceito a morte como uma parte da vida.

 

Isso é mesmo assim?

- É. Mesmo. A sério. Morreu, morreu. Pronto. Se tiveres que chorar, choras, se tiveres que ter pena, tens pena. Mais: sou contra os cemitérios. Não sei se consigo cremar os meus familiares mais chegados. Não sei se os outros, que estão vivos, me vão deixar fazê-lo, mas isso é que é higiénico. Isso é o que se deve fazer. Ser comido por bichos, uma pessoa que eu amei? Ser comida por bichos? Que horror! Estar ali a ocupar terreno onde se podem fazer escolas, hospitais... estar ali a fazer parte do negócio que enche os cofres à Câmara? Não, isso não! Mas é muito difícil vivermos com a morte, aceitarmos a morte, encararmos o facto de que acabamos um dia. Não acredito que haja vida depois da morte, não havia espaço lá em cima. Morremos, morremos. Temos que aceitar que somos matéria. Orgânica.

 

É óbvio que não tens fé...

- Fui educado de uma forma católica, num espírito católico pela minha avó. Fiz a catequese e tudo. Fé? Tenho fé em mim. Acho que as pessoas precisam de um Deus, ou de algo que não conheçam, para viverem, para se desculparem, para pedirem, para acusarem, para se revoltarem. Eu não acredito que Deus exista. Acredito que cada um de nós é Deus, ou pode ser Deus. Que a fé é bonita. É bonito termos fé. Mas fé na esperança, na vida, em nós, na paz.

 

Tens ali um crucifixo deitado no móvel. Não está pendurado de propósito?

- Com certeza! Bolas! O homem está crucificado há dois mil anos... Será que nós não temos outra forma de o honrar e de lhe prestar homenagem? Tirando-o da cruz, deitando-o... Coitado do homem! Ele era só um homem! Um homem! Há dois mil anos que se servem dele, tal qual como se servem da Marilyn Monroe. Há dois mil anos que ganham dinheiro com ele. Ainda não o tiraram da parede nem da cruz. Isso revolta-me. Isso e o facto de a religião ser motivo de tantas guerras. Como agora está a acontecer: em Terra Santa, tanta bomba. Qual santa qual carapuça! Se Deus existisse achas que aquilo acontecia?

 

Às vezes temo que Deus seja um terrível sádico.

- Se Deus algum dia existiu, já desistiu. Já pôs a mão na cabeça, e disse: "Mas o que é que eu criei?" Mas acho que Ele não criou nada, foi criado. Porque nós, homens, precisamos disso. Porque não somos tão fortes como pensamos.

 

O que é que a tua avó fazia?

- A minha avó era professora de danças de salão na Escola Mendes Pereira. E depois foi gerente do Café dos Pretos, na Feira Popular. Era muito avançada para a época. Lembro-me que levou calças, uma vez, quando fomos a Chaves visitar uns primos. Toda a gente a gritar: "Parece um homem! Uma mulher não veste calças!" Ela estava-se nas tintas. E ainda não te falei na minha bisavó.

 

Bisavó?

- Chamava-se Rosalina. E tinha muitas rugas... Muitas! Aquilo já nem eram rugas, eram estradas, caminhos! Acho tão bonito, a idade marcada num rosto. É como se cada estrada daquelas tivesse um romance para contar. A minha bisavó Rosalina tinha a cara cheia de romances. E vendia peixe. Eu comia peixe muito bom quando era miúdo. Devo ser das poucas crianças que gostava de peixe.

 

Que idade tinhas quando ela morreu?

- Tinha 20 anos. Ela era uma pessoa fabulosa, lindíssima. Quando eu e a Leonor decidimos casar, a minha bisavó disse que a queria conhecer. E a primeira coisa que fez quando a viu foi apalpar-lhe as mamas, a ver se eram boas para ser minha mulher. 

 

Isso é espantoso...

- É. Ela era assim. Uma pessoa extraordinária....


E então? Qual foi o veredicto?

- Casei.

 

Que idade tinhas?

- Eu tinha 19, ela tinha 29. Era uma mulher linda. Continua a ser.

 

Ela não tinha nada a ver com o teatro?

- Nada. Era funcionária pública, uma mulher normalíssima. O meu disse-me: "Tu é que sabes". E eu casei. Não tive filhos...

 

Por opção?

- Não. Falhou por duas vezes. Depois não tentámos mais. Também não me arrependo de não ter. Não é objectivo de vida para mim.

 

Não tens pena?

- Não penso nisso. Percebo que o Belmiro de Azevedo pense. Eu não!

 

Não digas isso... Fica-te mal.

- Eu não tenho legado nenhum para deixar!

 

Mas ter um filho não é isso. Não é só isso!

- Então é o quê? É o ensinar? É o quê?

 

É dar a mão, ensinar, proteger. É teres ali um ser humano que é uma parte de ti, que se parece contigo, que é teu...

- Ah! "Eu fiz isto, que é meu, é igual a mim, que bom que eu sou". É isso?

 

Mau... Estamos a desconversar.

- Não penso nisso, a sério. E gosto de crianças, muito. São lindas. Agora, eu não sacrificaria a minha carreira nem por filhos nem por um amor.

 

Então agradeces o facto de não teres tido filhos.

- O que tem que acontecer, acontece. Não aconteceu, não aconteceu...

 

Mas ainda bem.

- Sei lá! Não aconteceu, sei lá. Só sei que não preciso de estar casado, não preciso de filhos, não preciso disso para viver.

 

Mas porque é que estás tão agressivo, de repente?

- Porque me irrita essa pergunta, percebes?

 

Não. Porquê?

- Porque é que  temos que ser todos iguais?

 

Não temos que ser todos iguais. Eu não disse nada disso.

- Então, pronto. Ok. Mas sou fértil. Isso eu sei.

 

Quanto tempo estiveste casado?

- Treze anos. A Leonor foi uma mulher que me ensinou muito que me apanhou numa fase em que eu não estava ainda preparado para ser homem, para assumir responsabilidades. Uma mulher que me aturou coisas horríveis. Horríveis. Hoje, olhando para trás, era capaz de ir de joelhos daqui a Fátima para pedir perdão. É uma mulher que eu estimo muito e que era - e é - linda de morrer.

 

São amigos?

- Somos amigos, muito amigos.

 

Deixaste de acreditar no casamento.

- Acho uma chatice viver com alguém. Acho muito bom “ter” alguém, e sermos “tidos” por alguém. Agora, viver no mesmo espaço com outra pessoa, consecutivamente, diariamente, não. Quero ter espaço para mim, quero ter tempo para mim, quero acordar e não ver ninguém. Ou ver alguém às vezes. E depois tenho sempre a minha Casimira, a minha terceira mãe, uma mulher adorável . Trata de mim, trata me da casa, atura-me. É a ela que telefono quando estou doente. E ela vem dar-me o pequeno almoço e aconchegar-me o saco de água quente e ver se a febre já baixou.

 

Vamos recuar novamente. Que tipo de “enfant” eras tu?

- Terrible. Terrible et seul. Gostava muito de estar sozinho. A controlar, à distância. E tinha muitas namoradas ao mesmo tempo.

 

Sempre foste assim giro ou és como o vinho do Porto?

- Desculpa?... Perdão?

 

Vá, anda. Deixa de chiliques e diz-me lá se eras giro ou não na adolescência.

- Não sei se era giro. Tinha muitas namoradas.

 

E achavas que era porquê?

- Ouvia-as. A coisa que as mulheres mais gostam é que um homem as oiça. Qualquer homem que tenha paciência para ouvir uma mulher, e que a faça rir de vez em quando, e que lhe saiba fazer uma festa e dar-lhe um beijo na altura certa, tem essa mulher nas mãos.

 

E tu aprendeste isso cedo.

- Acho que não aprendi, acho que foi natural.

 

Um dom que nasceu contigo.

-  Estás a rir-te de quê? (risos)

 

Começaste a fazer teatro muito cedo, na escola...

- A primeira vez que pisei um palco foi na voz do operário. Tinha 5 anos.

 

Qual era o teu papel?

- Fazia de marinheiro e dançava. Fazia assim aos bracinhos, para cima e para baixo. Tenho uma fotografia, não sei onde está.

 

Depois, ao longo dos anos, foste fazendo teatro na escola e nas férias. Percebeste logo que era aquilo que querias para a tua vida?

- Não! Eu sabia lá o que era aquilo... era um divertimento! O que eu queria era ser médico.

 

Médico?

- Sim. Porque a minha avó tinha doenças e eu queria tratá-la. Não te sei explicar porque é que decidi ser actor, porque é que escolhi ser actor, mas acho que foi a minha avó que, a pouco e pouco, me foi viciando no escuro, nas luzes, no sonho. Porque me levava ao Odeon para ver os filmes todos do Joselito, do Tony de Matos, da Sara Montiel...porque me levava à Revista. Porque me ia pôr ao cinema Royal, para eu ver às escondidas filmes que não eram para a minha idade. Ela ia me lá pôr, depois ia-me buscar. E as danças de salão e a Feira Popular... tenho um desejo há uns 10 anos que hei-de concretizar, espero que em breve. Talvez para o ano. Quero fazer “Os cavalos também se abatem” no Poço da Morte da Feira Popular.

 

Queres encenar?

- Quero. Com patins. À exaustão. A peça é muito actual, sempre foi. Todos nós tentamos aguentar até ganharmos. Quero fazer isso. Vou concorrer a um subsídio. Não preciso que me dêem muito dinheiro, depois arranjo uns patrocínios.

 

Nunca encenaste?

- Só em miúdo. Fiz “A princesa que guardava patos”.

 

 Mas nunca encenaste por falta de vontade, não era chegado o momento?

-  Sempre que me apeteceu fazer encenações ou apresentar trabalhos em que a responsabilidade era toda minha, tive vergonha. Tive medo das críticas. Disse para mim:  “quem é que tu pensas que és para fazer isto?” Só que agora acho que estou a perder um pouco esse medo, essa vergonha. Nós temos que fazer as coisas que queremos enquanto vivemos.

 

O teu pai não era dessa opinião quando lhe disseste que querias ser actor.

- O meu pai não reagiu bem. Disse-me: “OK! Então a tua avó paga te o curso que eu não pago nada disso!” E assim foi. A minha avó pegou numa as economias que tinha e eu fui viver para casa dela. Durante o dia trabalhava, vendia electrodomésticos numa casa que se chamava “Triângulo Vermelho”, na Almirante Reis. Acartava com electrodomésticos para quintos e sétimos andares... e à noite ia para o Conservatório.

 

Mas não acabaste o Conservatório.

- Fiquei me pelo 2º ano. Porque quando pedi ao Conservatório para passar a ter aulas de dia, disseram-me que tinha de repetir o 2º ano. Aí desisti. Achei que estava a perder tempo. E comecei a fazer figuração. Muita figuração. E fui aprendendo a ver. Cinema, teatro.

 

Perdoaste ao teu pai por não ter aceitado bem a tua decisão de queres ser actor?

- Não se trata de perdoar. Trata-se de compreender. O meu pai, como homem lutador que sempre foi, estava apenas a tentar proteger-me de uma vida de insegurança material. O teatro era uma vida de constante insegurança. Não se sabia o dia de amanhã. Ainda hoje é assim.

 

 Estreaste-te na Casa da Comédia. Quanto tempo é que lá ficaste?

- Cinco anos. Aprendi imenso na Casa da Comédia. Fiz de tudo. Deitei abaixo paredes, pintei paredes, fiz assistência de encenação, assistência de produção, produção, vendi copos, vendi bilhetes, arrumei pessoas. A vida não deve ser fácil. Tem que ser difícil. Sabe-nos melhor viver quando a vida tem as suas contrariedades. É isso que as pessoas que querem aparecer nas capas das revistas esquecem. Que a facilidade não faz a vida saber melhor.  No outro dia li esta frase brilhante de uma menina que anda para aí: “Durante 30 minutos incorporo a personagem”.  Tu acreditas nisto?

 

 Não sou atriz. Mas já vi que tu não acreditas.

- Por amor de Deus! “Incorporo a personagem”?! Ouve lá, o que é isto? Não se leva a personagem para casa, não se “incorpora” a personagem. Isso é esquizofrenia! As pessoas que dizem este tipo de coisa têm que ser tratadas. A sério! Já fiz psicanálise. Não é nenhuma vergonha.

 

Já fizeste psicanálise? Deixa-me adivinhar: andavas a incorporar personagens e a levá-las a todas para casa.

-  Era, era! A todas. Era uma multidão lá em casa... isso é de doidos! Quando leio estas coisas rio-me, rio-me. Ó pá, ser actor implica muito trabalho. Muito. Mas quando o trabalho acaba, somos como outra pessoa qualquer, vamos para casa, vamos ao cinema, comemos, dormimos... não andamos à deriva, sem saber se somos nós, se somos a personagem... Por favor! Ser actor não é isso.

 

O que é ser actor?

-  É tão difícil explicar...  No dicionário virá qualquer coisa como: “Pessoa que interpreta outras personagens”, mas é muito mais do que isso. É uma busca, é uma procura, é uma motivação, é trabalhar com emoções, com sentimentos, é mentir, é iludir... É reivindicar, revolucionar, influenciar, imitar... É trabalho, trabalho, trabalho.

 

Em teatro ou em cinema?

- Gosto muito de fazer teatro. Imenso. Foi o teatro que me fez descobrir em mim o desejo e a vontade de ser actor. Mas o que eu gosto mesmo, mesmo, mesmo, é de cinema. Cada vez gosto mais.

 

 Gostas de te ver na tela?

-  Não gosto nem desgosto. Acredito ou não acredito. De há uns tempos a esta parte até já consigo uma coisa fantástica que é abstrair-me que aquele sou eu. Distancio-me de mim e consigo ver apenas aquele actor a representar. E aí vejo se esse actor me convence ou não.

 

Consideras-te um bom actor?

- Não sei. Não sei responder a isso. Considero que muitas vezes já cumpri os objectivos que me eram pedidos. Não sei se sou bom ou se sou mau actor.

 

 Isso é modéstia... Tu tens que saber responder a isso.  Se sabes distinguir um bom actor de um mau... se até já consegues distanciar-te de ti próprio e veres se esse tipo- que és tu - te convence ou não... como é que não sabes dizer se és bom ou mau?

- Não sou capaz de te responder a isso.

 

 Está bem, podes não ser capaz de por uma questão de modéstia... Mas sabes. Lá dentro sabes.

-  Não, não sei. Há trabalhos em que gosto do que fiz, e fico contente. Há outros em que não gosto do que fiz, e não fico nada contente, e evito vê-los.

 

 Diz-me com sinceridade: nunca te deixaste deslumbrar?

- Quando fiz os “Queridos Inimigos” ganhava muito dinheiro. Ganhava 400 contos por programa. Foram 52 programas, faz as contas. Deslumbrei-me. Acho que foi a fase mais tonta da minha vida. Mais parva. Mais idiota. Primeiro porque estava a fazer uma coisa com a qual não concordava. Depois porque estava a ser arrasado pela imprensa e pela crítica. Era gozado e custava me porque pensava assim: “Eles não sabem que não é isto que eu quero fazer estou a fazê-lo apenas para poder ter uma independência material, para poder comprar a minha casinha”.

 

Foi só um deslumbramento pelo dinheiro ou estarias também embebedado com a fama?

- Também com a fama, infelizmente. Acho que sim, que estava.

 

 Repetias?

- Não.

 

Mesmo que tivesses que comprar a casa?

- Não repetia. Não! Pedia um empréstimo.  Não repetia.

 

 Fez muita mossa na tua carreira o “Queridos Inimigos”?

- Não, graças a Deus não. Pouco tempo depois faço o “Party”, com o Manoel de Oliveira. O Manoel de Oliveira adorava o “Queridos Inimigos”.

 

Adorava? Estás a brincar?

-  “Gosto de te ver no programa. É engraçado”, dizia ele.

 

O que é que lhe dizias, tu?

- Nada. Não lhe dizia nada. “Sim, mestre”.  “Obrigado, mestre. Obrigado, mestre”. Gosto muito do Manoel.

 

É “O” Mestre...

- É. Ainda há-de trazer um Óscar para este país. Póstumo. De consagração. É um grande cineasta. O Antonioni também está vivo. São os últimos. Os últimos dinossauros.

 

Tens dele essa imagem de mestre, no sentido de pai? Segundo pai?

- Tenho, tenho. Aprendi muito com o Manoel. Aprendo sempre.

 

 Como é trabalhar com O Mestre?

-  Se disseres bem o texto, e devagar para ele o poder ouvir, ele dá-te total liberdade para criares. Se quiseres ficar parada, ficas. Se quiseres representar, representas. Só tens é que pôr as mãos onde ele quer, fazer as marcações que ele quer, olhar para onde ele quer. Nisso é muito rigoroso. É tão bom trabalhar com ele...

 

 É o melhor que te pode acontecer?

-  É. Mesmo que eu só lá vá dizer uma frase, é um prazer. Neste último filme, “Palavra e Utopia”, tenho uma pequena participação.  Mas é sempre um prazer.

 

 Quantos filmes já fizeste com ele?

- Cinco. É um grande cineasta o Manoel, um grande realizador.

 

O nosso maior.

- O nosso maior. O Manoel é maior que este país. E respeitamo-lo muito pouco.

 

Ele sente isso?

- Não! Está-se nas tintas. O Manoel, como artista, tem a liberdade de fazer o que quer. E isso é a coisa mais bonita que um artista pode desejar ou ter. É deixaram-no fazer o que ele quer.

 

O que é que sentiste quando te telefonaram pela primeira vez para entrares n’”Os Canibais”?

- Uh! Dei pulos de contente. Mas dou sempre pulos de contente, não é só com Oliveira. E penso: “Mas porquê eu?”

Mas isso é o quê? Insegurança?

- Não sei. Talvez um bocadinho de insegurança, sim. Fico sempre apavorado. Cheio de medo de não ser capaz. Mas é bom viver assim. A gente trabalha mais porque trabalhando muito consegue-se. Trabalho muito. Levanto-me cedo e trabalho, trabalho, trabalho. Aprendi isso com o João Perry. Temos que tentar ser sempre melhores do que da última vez.

 

Não sentes que perdes muitas coisas da vida?

-  Não porque o meu trabalho dá-me tanto que compensa todas essas coisas que eu perco. E convém tornar a sublinhar uma coisa: eu nunca sacrificaria o meu trabalho por nada. Nem por filhos, nem por amor. O meu trabalho dá-me tudo que eu preciso. Isto pode parecer utópico,  irrealista, mas digo-te com a maior das sinceridades: o meu trabalho dá-me tudo o que eu preciso.

 

 Já te ouvi dizer que achas belíssima a ideia de morrer por amor. Um homem que acha linda esta ideia, também deve encontrar beleza na ideia de roubar bocadinhos ao trabalho por amor, que é bem mais simples que morrer “tout court”...

- Mas quem é que te disse que eu não amo o meu trabalho? Não vou dizer, como o Marco Paulo, que casei com a carreira, como deves calcular. Isso não digo. Mas posso morrer a trabalhar. E esse pode ser o meu acto de amor.

 

 Duvido... Disseste numa entrevista que te ias reformar aos 45...

- Eu disse isso? De certeza que foi na altura do “Queridos Inimigos”, em que eu só dizia disparates. Reformar-me aos 45? Nem pensar nisso! Tenciono recomeçar aos 45. Inclusivamente há pessoas com quem eu quero trabalhar. Quero ir ter com elas e dizer-lhes na cara: “eu quero trabalhar contigo”. E acho que esse momento está a chegar porque a gente vai perdendo a vergonha com os anos.

 

Por falar em idade ...foi-te difícil entrar nos “entas”?

- Por acaso, quando fiz 40 anos, não foi fácil. Fiz a revisão da matéria dada, neste caso a revisão da matéria vivida, e comecei a tentar projectar a matéria que queria dar, neste caso aquilo que ainda queria viver. E digo-te que não foi nada fácil. Foi precisamente o ano em que fiz psicanálise.

 

 Ajudou-te.

- Ajudou muito. Fiz psicanálise durante 6 meses e fui muito ajudado por essa mulher extraordinária chamada Margarida Pinheiro Marques que me ensinou a não dizer “odeio”, “tenho de”, ou “não gosto”. Em vez disso, passei a dizer “gostava de”, “não gosto muito de”. O ódio é uma palavra muito forte que nós usamos para tudo hoje em dia. Depois perde o peso.

 

Mas não há nada que realmente odeies? Com esse peso?

- Há. Evidente que há. Odeio a guerra. Odeio saber que há pessoas que passam fome. Custa-me viver num país com 10 milhões de habitantes e onde não se consegue resolver o problema da educação, da saúde, e da miséria.  É pá, não se consegue? Num país com 10 milhões de habitantes? Porra!

 

 Ainda acreditas que um dia alguma coisa vai mudar?

- As coisas têm que mudar. Acho que todos nós temos essa responsabilidade. Temos que nos revoltar, reivindicar. Vivemos numa sociedade em que só existem deveres. Os direitos estão a desaparecer. Mas nós temos direitos. Cada um de nós, individualmente, tem a obrigação de modificar e de exigir e de criar o país que quer.

 

 Isso é utopia, sabes disso, não é?

- Não é nada utopia. Não é!

As pessoas nem sequer votam! Esse, por exemplo, é um direito que têm e são cada vez menos as que fazem uso dele!

- E eu pergunto-me: porque é que se fazem as eleições a um domingo e não a um dia de semana? Porque é que não é obrigatório votar? Porque isso é ditatorial? “Obrigatório”, não se pode dizer a palavra? Nós temos que votar. Se não votarmos não podemos reclamar. O povo... Ai desculpa, isto não se diz. Hoje não se diz povo. Já reparaste?

 

Não se diz povo?

- Não. Hoje já não há povo. Há “sociedade civil”. Está na moda chamar ao povo sociedade civil. Tem piada! Eu sou do tempo da construção civil e do tempo em que havia povo. Por que raio é que hoje não se diz povo? Eu digo povo. O povo não se pode alhear dos problemas reais.

 

Mas alheia-se.

- E alheia-se porquê? Porque os políticos não lhes interessam. Porque os discursos políticos não passam disso mesmo, de discursos. Porque os políticos, antes de terem poder, eram uns zés-ninguéns e, de repente, têm uns carros de marca, uns cartões VISA, umas amantes, e ainda ganham dinheiro ao fim do mês! E, na prática, não fazem nada. Como é que o povo não se há-de alhear?

 

 Já reparaste bem no entusiasmo com que falas de política?

- Eu adoro política. Mas tinha que tirar um curso para me dedicar à política. Tinha que estudar mais.

 

 E depois não servia de nada porque eras engolido juntamente com as tuas ideias.

- Pois era. Como foram muitos. Mas antes de ser engolido e devorado fazia tudo andar num virote. Tu já viste primeiro-ministro mais vaidoso que o nosso? Não é vaidoso da obra, nem do país. É dele mesmo. Sempre que o vejo em cerimónias oficiais está preocupado com a melena, em vez de estar preocupado com o país. Toda a minha vida votei. Sempre. Mas agora palavra de honra que não sei para onde me virar. Parecem umas tias zangadas umas com as outras. Só tenho pena que não sejamos um país de humoristas. Podíamos rir tanto quando chegássemos a casa!

 

 Vês muita televisão?

-  Corro o sério risco de me tornar um teledependente. Porque vejo coisas tão ridículas que chega a dar um prazer sádico, cruel.

 

Não há nada bom?

- Há coisas boas, que respeito e procuro não perder. Adoro debates políticos. Adoro tudo o que seja telejornais, informação, grandes reportagens...papo tudo, tudo, tudo. Sinais do Tempo, Hora da Verdade, gosto muito do Contra-Informação, e tenho um eleito neste momento que é o Zapping.  Isso é que é um grande programa de humor feito com inteligência! Não perco um, tenho-os todos gravados. O Zapping é arte em televisão. Fica-me mal dizer isto? Estou armado em pseudo-intelectual porque é na RTP 2? Que se lixe! A verdade é que no serviço público, que nós pagamos, tudo o que é bom passa depois das 2 da manhã. Isso é outro assunto que também tem de ser resolvido rapidamente.

 

Qual é a solução para a RTP?

- Privatizem aquela merda! Eu não quero estar a pagar uma televisão que baixa ao nível para lutar pelas audiências. Isso não!

 

Falamos de televisão, temos necessariamente que abordar o tema da “casa mais famosa do país”. Já sei que depois do videoclipe do Otelo consideras o Big Brother uma brincadeira de crianças, mas...

-  Olha, ainda bem que falas de crianças nesse contexto! Porque o Big Brother é um programa para adultos, não é para crianças. Os ex-residentes do Big Brother não devem ir ao Batatoon. Sabias que já lá estiveram?

 

Sabia.

- Eu que tinha ficado tão contente quando o Batatoon conseguiu atingir os níveis de audiência e de fama que conseguiu... Que bom! As crianças tornarem a gostar de palhaço! Porque há uma idade para cada coisa e a infância é para as crianças terem ilusões, sonharem, brincarem.  Não é para ouvirem uma rapariguinha que troca os “vês” pelos “bês” dizer: “Chega-te para lá que eu quero-me peidar”.

 

Até um adulto fica atordoado, quanto mais uma criança!

- Exactamente. Agora, não há dúvida de que o Big Brother, como exercício de crueldade, é genial. Genial! Como análise do ser humano é genial. Tens um indivíduo que foi expulso da casa e que disse: “A casa precisa de um líder”. Os alemães disseram o mesmo quando elegeram o Hitler. Perguntas-me: “Estamos a criar monstrosinhos”? Eu acho que estamos é a deixar que monstrosinhos já nados e criados apareçam. Mas como eu não sou a favor da censura, não me importo que aquilo exista. Tem que existir é num horário específico. Depois das dez da noite. E, já agora, agradecia que pusessem “pis” quando houver palavrões e frases obscenas, e bolinha vermelha no canto superior direito.

 

Mas mais grave que isso são os programas supostamente para crianças que são de uma violência extraordinária...

- E as promoções de programas para adultos exibidos em horário em que as crianças podem ver. Ó pá, mas diz-me uma coisa: alguém está preocupado? Há neste país alguma associação de pais? Não sei se há. Alguém está preocupado? Aquela coisa dos pides, como é que aquilo se chama?

 

Dos pides?

-  Sim, dos pides modernos... Ai, como é que se chama? Aquela associação de gente que escolhe os programas do mês da televisão e que só gostam de merda. Fazem-me lembrar os sensores de antigamente que iam ao teatro ver as peças no escuro para marcar os cortes.

 

O quê? As associações de telespectadores?

- Isso, isso! Mas quem é essa gente? Dá ideia que são uns velhos impotentes e umas velhas com incontinência, fechados numa sala durante 24 horas, sempre a ver televisão, os canais todos, e que só não se comem porque já não conseguem. Os programas que eles escolhem para melhores e para piores são, às vezes, de ir às lágrimas. Não sei quem são, não os conheço, mas gostava de ver a cara deles. Fazem-me sempre lembrar aquelas eminências pardas que eram os censores.

 

 Viste o “Branca de Neve”?

-  Não, mas tenho muita curiosidade e quero ir ver.

 

Que pena... Sem teres visto não podes comentar.

-  Nem mais. Acho que não se pode falar sem ver e acho que não se deve atirar poeira para os olhos do povo. Ou seja, temos que olhar um bocadinho para a obra do João César Monteiro antes de criticar o “Branca de Neve”. Mas, se calhar, o “Branca de Neve” até uma obra de arte e um momento ímpar na carreira do César Monteiro.

 

O que choca as pessoas é o facto de um filme a negro ter sido pago com dinheiro do Estado... e a peso de ouro.

- Foi, mas a peça que está agora em cena com o Paulo Pires e Catarina Furtado também recebeu subsídios do Estado. Qual é a diferença? Não estou a perceber. Isso já não revolta as pessoas? Eles são duas figuras conhecidas, vão levar muita gente ao teatro. Para que é que precisavam de subsídio? Há coisas com as quais nós nos devíamos revoltar e não nos revoltamos. Porque é que as pessoas não se revoltam com o facto de o Teatro Nacional gastar 1 milhão de contos por ano e estar fechado praticamente o ano todo? A mim custa-me mais.

 

 Tencionas ir ver a “Maçã no Escuro”, com a Catarina Furtado e Paulo Pires?

-  Já te disse que quando quiser ver esse tipo de pessoas ligo a televisão, porra! Porque eles fazem deles. Porque é que eu hei-de ir ver uma peça de teatro se os vejo nos “fashions” e nas modas e nas revistas... Porquê?

 

Mas nessa peça entram pessoas que tu respeitas...

-  Entram. Mas eu também respeito a Catarina e o Paulo Pires.

 

Respeitar enquanto actores. Estou a dizer enquanto actores.

- Entra a Maria Emília Correia, que eu respeito imenso, e a quem o estado deu um subsídio. Mas o diretor do Nacional também convidou o Paulo Pires para fazer uma peça de teatro como protagonista. Isso é mais grave. E convidou a Sofia Aparício. Aqui o erro não é das pessoas que aceitam. O erro é das pessoas que convidam. Temos  é que os interrogar: não há actores? É a mediatização? É para ganhar dinheiro? É porque é moda?

 

 Às vezes essas críticas soam a inveja. Eles roubam-vos o trabalho, a vós, actores?

- Não! Que disparate! Nunca os actores portugueses tiveram tanto trabalho! Neste momento há não sei quantas produções em curso... Felizmente! Inveja? Não me faças rir.

 

Não admites sequer que essas figuras mediáticas possam trazer mais gente ao teatro?

- Trazem por efeito. Ou seja, o facto de uma peça com uma figura mediática estar esgotada, não quer dizer que o teatro tenha ganho mais espectadores. Ganhou mais espectadores para aquela peça.

 

Mas não achas que as pessoas que foram ver aquela peça podem gostar tanto que voltem ao teatro para ver outras peças?

- Não. Porque essas pessoas não vão ver a peça. Não vão ver teatro. Vão ver a pessoa. Não, não concordo nada com essa teoria.

 

O que é que achaste do desempenho do ex-ministro Carrilho?

- Tenho o maior dos respeitos pelo Carrilho. Acho que é um homem extremamente inteligente. Não sei se é um bom político, sei que, por causa dele, falou-se muito de cultura. Muito, muito, muito. A cultura de repente ficou mediática. E isso faz falta.

 

E em relação a este ministro? Já tens noção?

- Eu conheço o José Sasportes há muito tempo. Desde o Centro de Arte Moderna, quando trabalhei lá. Acho que o José Sasportes vai continuar um pouco aquilo que o Carrilho deixou delineado. Neste momento não pode mudar muita coisa. Mas tenho medo que valorize áreas que eu sei que ele gosta mais: a dança, a música... sobretudo a dança. Claro que são áreas que devem ser valorizadas, mas tenho medo que deixe o cinema ou teatro, os audiovisuais, para mais tarde. Ou que lhes mexa pouco.

 

 Já me disseste que não precisas de casar, nem de ter filhos para ser feliz. E eu acredito e não se fala mais nisso. Mas não temes a solidão?

- Nada. Quase nunca estou sozinho. Passo o dia rodeado de pessoas. Só estou sozinho quando estou a dormir.

 

E quando chegas a casa, quando metes a chave à porta? Há pouco, quando saíamos da tua casa, deixaste a luz e o rádio ligados. Isso não é já por si uma fuga à solidão, ao silêncio?

-  Não. Gosto de chegar a casa e ter a sensação que está lá alguém. Mas não creio que isso tenha a ver com o medo da solidão. Chego a casa, janto, leio jornais, vejo televisão, dou de comer aos cães, brinco um bocado com eles, falo com eles, explico-lhes... Tento explicar-lhes que se ladrarem de noite acordam-me... e acho que eles percebem. Solidão? Não. Há tanta gente que está acompanhada e está profundamente sozinha. Já me senti só, claro, mas também já senti tudo: medo, solidão, desejo, vontade, pena... já senti isso tudo.

 

Sabes cozinhar ou é a Casimira que te salva de morreres à fome?

- Infelizmente, é a única coisa que eu tenho a apontar à minha mãe, ao meu pai, e à minha avó. A minha avó, então, ensinou-me a fazer tudo, até a passar a ferro. Menos a cozinhar. E eu acho que isso é mesmo uma coisa de geração, em que cozinhar era para as mulheres. Passar uma camisa, um homem podia ter de passar, numa urgência, e por isso era bom que aprendesse. Cozinhar era exclusivo das mulheres. Ter filhos e cozinhar. E a minha avó não me ensinou.

 

Não cozinhas nada?

- Cozinho! Como imenso de bacalhau cozido. Sei cozer peixe, sei cozer bacalhau, sei fazer bifes, sei fazer sopa... Isso sei e muito bem. Como a minha sopa não há nenhuma!

 

O que é que leva a tua sopa?

- É sempre à base de cenouras, abóbora, cebolas, alguns alhos, azeite de baixo teor desse acidez, uma batata só, para iludir a sopa...

 

 Sabes como é que iludes muito bem a sopa sem batata?  Com couve-flor.

- Ah, pois é. Já me tinham dito e tenho de experimentar. Depois misturo grão, ervilhas, feijão... tudo em lata para ser prático. Eu sou prático, prático.

 

Imagina que tens um dia livre. O que é o dia livre ideal para ti?

- Num dia livre não há relógios, nem despertadores, nem pessoas a baterem à porta, sob pena de serem corridas quase à pedrada. Música calma, um bom pequeno-almoço...

 

 O que é um bom pequeno-almoço?

 - É um sumo de laranja natural, torradas com manteiga ou com geleia... Melão, papaia, iogurtes, muitos cafés... Depois vou a correr comprar os jornais, acendo a lareira ou não - conforme os dias - e fico em casa a ler de pijama. Aliás, vou comprar os jornais de pijama. São as vantagens de morar na província.

 

 Não vais nada de pijama.

- Vou, vou! Também não se nota assim tanto, não é um pijama às riscas! São umas calças de fato de treino e uma t-shirt. Mas mesmo que se notasse, não me ralava nada se quer saber. Um dia livre ideal é assim. Gosto muitíssimo de ler. E temos escritores tão bons...

 

Quem são os teus eleitos?

- Tantos! José Saramago, como é óbvio e evidente, desde que li o Memorial do Convento. Sabes o que foi o único livro português que li 3 vezes? Era o grande filme que eu gostava de fazer. Era o nosso grande filme! José Cardoso Pires, António Lobo Antunes, Eugénio de Andrade, o Al Berto... Tantos, tantos, tantos! Este país é assim uma macieira cheia de maçãs podres, que no meio tem uns diamantes.

 

 Que bela definição...

- E há muitos diamantes: Paula Rego, Maria João Pires, Siza Vieira... Como eu tenho orgulho em falar a língua e ter nascido no mesmo país que eles! E há muitos mais: Maria João, Mário Laginha, Graça Morais... Sabes quais são os meus sonhos materiais?

 

Não. Conta.

-  Uma casa feita, desenhada não pelo Siza porque dificilmente teria dinheiro para lhe pagar, mas pelo filho ou por um discípulo. E ter um quadro da Paula Rego lá dentro. Só tenho estes dois sonhos materiais.

 

 Só? São dois diamantes...

- Pois são. Dois diamantes de uma macieira cheia de maçãs podres.

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É verdade. Também eu tenho um podcast. Chama-se "Eu sou... "

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Quando aqui há uns valentes anos fui convidada a ir botar discurso ao Parlamento Europeu, com mais uns quantos criadores de conteúdos digitais de vários países da Europa, conheci uma alemã (ela vive na Áustria mas acho que é alemã) que me disse que devia criar um podcast. A coisa estava a rebentar em Viena e ela dizia que eu devia ser pioneira, já quem em Portugal ainda mal se falava no assunto.

Não me apeteceu. Sou-vos franca. Isto de nos termos sempre de reinventar é muito giro, muito interessante, obriga-nos a não parar, a estar em constante evolução, mas caraças. A vida digital é muito exigente. Primeiro foi o blogue, depois tinha de ter Facebook. A seguir veio o Instagram e era óbvio que tinha de ter uma conta. E a seguir ainda insistiram com o Twitter, e com o Youtube, e depois no Instagram vieram os Directos e mais recentemente os Reels, e depois o Tik Tok, e mais o Podcast, e a páginas tantas pareço uma perfeita anormal, a tentar estar em todas as plataformas ao mesmo tempo, sem verdadeiramente me dedicar com esmero a uma só.

Tenho tentado escolher, tenho tentado ir fazendo, ir-me descobrindo no meio do tanto que se vai inventando, e tentar nunca me perder no meio do turbilhão. Já me perdi, já me encontrei, já deixei este blogue adormecido, praticamente em coma, depois sinto-lhe a falta, regresso, mas lá surge qualquer coisa que pede a minha atenção noutras bandas e lá sigo eu, feita marioneta dos tempos modernos.

Vi então nascer podcasts como uma desova. Uns sobre política, outros sobre humor, amor, sexo, lifestyle, entrevistas a famosos. Fui acompanhando aqui e além. E cada vez menos encontrava vontade de fazer, até porque tudo parecia já feito. Mas o meu marido foi dizendo que eu devia, que era pena, que eu até tinha gostado tanto de fazer rádio, quando fiz, tantos anos seguidos. E aquilo ficou aqui a fermentar, como a massa mãe num alguidar, tapada por um pano. Um dia, pensei nas vozes de muitos que conheci, quando fazia reportagens pelo país adentro. E decidi experimentar. Deixa cá ver se isto daria alguma coisa. A minha irmã deu-me o contacto da D. Ester e eu fui conhecê-la. Mal ela disse o nome e atirou aquela gargalhada contagiante eu soube que tinha nascido o meu podcast. 

Chama-se, então, "Eu sou"  e é sobre as pessoas que raramente chegam a ter voz no espaço público (as minhas preferidas, by the way). São assim aqueles peões do tabuleiro que parecem não contar para o jogo - engano puro, como sabemos (ficou célebre a frase de um dos génios do xadrez e o melhor jogador da sua época, François-André Philidor: “Os peões são a alma do xadrez”). E são esses que vão ter voz, neste podcast, chamado “Eu sou….”. Não precisam ser reis, rainhas, bispos. Basta que sejam pessoas, com histórias para contar.

A ideia foi remover ao máximo a minha voz para que a pessoa tenha o palco inteiro, como se fosse o seu monólogo, o momento em que o foco está todo em si. Nem sempre é possível, porque o trabalho de edição é tramado e, na passagem de um tema para o outro, às vezes é preciso uma pergunta audível para colar a conversa.
Fui eu que entrevistei e editei, com os meus conhecimentos precários (muito precários) de edição. Os puristas sentirão imperfeições, mas tentei que ficasse o melhor possível.
Apresento-vos, para começar, a D.Ester Claro. Espero que se comovam e enterneçam com ela como eu me comovi e enterneci.
O podcast está disponível no Spotify e na Apple Podcasts. E agora aqui também.

Espero que gostem. 

(Se tudo tiver corrido bem, é só clicar na imagem em baixo para ouvir)

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Perfil: Fernando Centeio

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Para contar a história de Fernando Centeio, começo na primeira pessoa. Porque foi assim que tudo começou, pelo impacto que aquele tipo sorridente e de uma simpatia desarmante teve em mim.

Tinha acabado de me mudar para um escritório novo, no Alto de São João, e tudo tinha aquele aspecto de centro criativo fervilhante, em que imaginava pessoas extrovertidas e entusiasmadas com as respectivas artes, muito mais do que gente enclausurada em gabinetes, de tom macilento, e olhos postos na hora da saída.

Eu (e reforço, esta incursão na primeira pessoa é mesmo só para contextualizar, já vamos ao que realmente interessa) estava delirante com o meu novo espaço: tinha móveis por montar, outros que eu própria me encarreguei de lixar e pintar, e cada dia era uma festa renovada de prazer de construção e de início. Nunca conseguirei descrever o quanto sou doida por inícios.

Os dias foram passando, as pessoas dos escritórios vizinhos também, e só uma me bateu à porta e abriu, depois do meu assentimento feliz:

- Olá! Então seja muito bem-vinda! O meu nome é Fernando, sou o vizinho ali da Zulfilmes! Qualquer coisa que precise é dizer!

Depois desse dia, repetiram-se outros. Calha que o meu escritório é a caminho das casas de banho - é, como se costuma dizer, local de passagem. Mas calha que, entre aqueles que passam, só ele pára. Só ele passa, acena, abre, espreita e atira um bom dia que sabe a verão mesmo que esteja a chover. Só ele não se ensaia de espalhar alegria e uma energia que, mesmo para quem sabe pouco (ou nada) de energias, é uma espécie de raio de luz que fica, mesmo quando a porta se fecha, e ele se vai.

Acresce que Fernando Centeio é um nome conhecido e reconhecido do cinema português. A porra é que o cinema português teima em ser conhecido por poucos. Mas, ainda assim, ele já fez tantas coisas que podia ter-lhe dado para ser como tantos que se julgam acima dos demais e que, por isso mesmo, jamais se dariam ao trabalho de bater à porta de uma ilustre desconhecida, oferecendo ajuda e boas-vindas.

Este é, para começo de conversa, Fernando Centeio. Nos dias que correm, diria que é um começo de conversa que diz muito.

Fernando Centeio nasceu em Castelo Branco, tem 54 anos, e é um poço fundo de histórias, com uma vida invejável de experiências, mas é também um tipo que não se esquece de que, na porta ao lado, pode muito bem estar alguém que lhe interessa conhecer – e leia-se, neste interesse, não um interesse profissional, comercial ou de qualquer outra conveniência, mas um interesse meramente humano. Fernando gosta genuinamente de pessoas. Gosta de conhecer pessoas. Gosta de as ouvir, e de se contar, e de se ligar aos outros. E mais: de ligar esses outros aos outros. O que faz de dele, dito pelo próprio, “uma espécie de engenheiro de pontes”. “Sempre que sei de alguém que precisa de outra pessoa para concretizar um projecto, como conheço muita gente, lembro-me logo de os pôr em contacto”

A génese de todo o fervilhar criativo que lhe vem de dentro começou em Castelo Branco, onde nasceu e cresceu. “Nos anos 80 havia um grupo giro de gente que fazia coisas e que estava a despertar para o mundo e a sentir que aquele meio era demasiado pequeno, que precisávamos de mais, como se asfixiássemos, um bocadinho. Cada um fazia as suas coisas, era um dinamismo muito interessante. Eu na cave tinha o meu atelier como todos tinham. Chamar-lhe atelier é uma piada. Era uma cave, gelada no inverno, onde tocava, escrevia, pintava. O que me salvou da asfixia, e creio que a todos, foram os manos Brás, que criaram uma coisa chamada ‘ManoBras’ e que era uma galeria de arte, um bar, uma sala de projecções, sei lá, era um verdadeiro centro cultural. Aquilo durou uns dois ou três anos e salvou-nos. Permitia-nos expressar-nos livremente. Ouvíamos música que alguém trazia de Londres, sonhávamos com o tanto que havíamos de fazer.”

Filho de um militar, Fernando estava destinado a ser piloto de helicópteros. No 3º ano, desistiu. E não só desistiu como informou a família de que iria estudar Cinema. “A reacção? Bom, no início ia levando com um pau! Não havia ninguém ligado às Artes, na família, acho que pensaram que eu tinha enlouquecido.”

Não enlouqueceu e depressa compreendeu que o seu maior prazer não era realizar, não era representar, era mesmo produzir. É isso que Fernando Centeio faz: é produtor de cinema. O que é, afinal de contas, um produtor de cinema? “É um vampiro de talentos. É alguém que sabe exactamente o que pode extrair de uma pessoa para um projecto em concreto. É um gestor de egos, um diplomata. E é também um fazedor de puzzles porque encaixa peças. Na verdade, é um fazedor porque faz acontecer: resolve logísticas, trata das partes técnicas e financeiras, acompanha, desfaz problemas, encontra soluções, acompanha o filme até ao fim, nas salas, depois das salas, para sempre. É um altruísta, também, porque constrói o esqueleto e depois afasta-se para o deixar ganhar vida própria. Sabe quando tem de largar, sabe quando tem de agarrar, sabe quando tem de estar perto, sabe quando tem de sair de cena. Por fim, é um solitário. Há dores que são só suas e que não pode partilhar com ninguém, sob pena de desmoralizar ou assustar toda a equipa. Tem um peso em cima dos ombros com o qual tem de saber lidar, e aprender a carregar.”

Volto à primeira pessoa para um queixume. Breve, prometo. Mas que também diz muito sobre ele. Sabem aquelas pessoas que a meio de uma história contam outra, e no meio dessa enfiam outra de que se lembram, e são todas de períodos distintos, em geografias diversas, e com pessoas díspares? Eis Fernando Centeio, em todo o seu esplendor. Conversámos durante horas. E agora, ao olhar o caderno onde escrevi a conversa, perco-me em filmes, histórias, peripécias. Ando para trás e para a frente com as páginas, em busca de uma cronologia, de um fio condutor, mas o filme desta vida é demasiado intenso para caber numa linha, toda muito rectilínea, toda muito certinha.

Talvez seja melhor focarmo-nos, então, em projectos que definitivamente o marcaram. E “O Tapete Voador” de João Mário Grilo é, sem dúvida, incontornável. O documentário é sobre a tradição milenar da tecelagem de tapetes persas no Irão, e foi por causa dele que o produtor “descobriu” a probabilidade de ser persa, de ter sido persa, de descender de persas, de qualquer coisa desse tipo que não sabe explicar mas que sentiu na pele, nos ossos, na alma, durante todo o tempo que lá esteve, e foram cerca de três meses.

O modo como descreve o Irão, a forma como foi acolhido, o modo como os pais lidam carinhosamente com as crianças, a qualidade de vida, faz qualquer pessoa começar a cogitar uma viagem até ao Golfo Pérsico. “Em Esfahan, recordo as margens do rio com relva, as famílias a fazerem piqueniques à noite, avôs a ensinarem netos a andar de bicicleta, pais a jogarem badminton com os filhos... uma paz.”

Outro dos momentos que não esquece é a sua estadia de duas semanas com a tribo Qashqa’i. “Nunca fui tão feliz na minha vida. Ali no brutal planalto de Dasht-e-Balkan, no meio de uma tribo, a sentir-me a viver um filme, de facto, mas real. Eles criam as ovelhas que dão a lã para os tapetes. E eu ali vivi, embasbacado, a beber tudo aquilo, a pensar na sorte que tinha por poder ter aquela experiência. O chefe da tribo andou a combater do Xá da Pérsia durante 40 anos e eu dormia na tenda ao lado da dele. Um homem de 80 anos, pequenino, devia medir aí 1,40m! Um dia, estávamos a falar e eu começo a vê-lo segurar na carabina, e a começar a carregá-la. Pensei: ‘tu queres ver que eu disse ou fiz alguma coisa que não devia?’ Estava um bocado à rasca. Às tantas o tradutor lá me explicou: ‘É por causa dos ursos!’ Ah, ok. Ursos! Muito mais descansado. A dormir numa tenda de pano, sim senhor. (risos)”

Nessa viagem, também será impossível que se perca, na sua memória, um miúdo de uns 10 anos que lhe disse que gostava de ficar com uma recordação sua. Que sabia que nunca mais o ia ver, e gostava de ficar com um objecto para o recordar. Fernando, emocionado, tirou o chapéu que costumava usar, assinou-o, e deu-lho. A criança levantou-se, foi buscar o seu Alcorão, e colocou-lho, directamente no peito, junto do coração. A emoção embarga a voz do produtor ao recordar esse momento, e tantos outros naquele que será o seu lugar de origem, esteja lá a origem onde estiver.

Mas nem só de comoções se fez esta viagem que Fernando Centeio fez para preparar as filmagens do realizador com quem trabalha há quase uma vida. “Numa das vezes que fui, levei comigo o fotógrafo e meu amigo Daniel Blaufuks. Não é que acabou preso, em Teerão? (ri-se) Tudo porque achou graça a ver um néon numa loja com o nome de um amigo. Fotografou, para depois lhe mostrar. Acabou preso porque o edifício ao lado era dos serviços secretos iranianos e acharam que ele era um espião ou coisa que o valesse. Felizmente a coisa safou-se bem, mas foi um susto do caraças.”

O regresso do Irão também trouxe uma história – o que só prova que há ali coisa. Tinha-se separado há vários anos da primeira mulher, mãe da sua única filha, Margarida. “Separámo-nos quando a Margarida tinha 3 anos. Vivíamos no Campo Pequeno, eu saí e montei casa na Passos Manuel, com um quarto para a minha filha ir passar o fim-de-semana- Fiquei com uma óptima relação com a minha ex-mulher, aliás, fico sempre com boas relações. Há 35 anos que sou produtor de cinema e não tenho um único inimigo. Está sempre tudo bem. Bom, o que pedi à Filipa foi para continuar a levar a Margarida à escola. Comprei uma mota de propósito  para ir de um ponto ao outro da cidade, fiz ponto de honra nisso. Passaram-se uns anos, uns 4 anos, vou para o Irão e, quando volto, nem sei bem como nem porquê, voltámos a namorar, eu e a mãe da Margarida. Às escondidas, para a miúda não ver porque não sabíamos o que aquilo ia dar. Aparecia quando ela já estava a dormir, passava a noite com a mãe, e depois saía antes dela acordar, para que não me visse. E tocava à porta como se visse da minha casa, para a levar à escola. (risos) Uns tempos depois, casámos. E ficámos juntos mais três anos.”

A Zulfilmes, nome da sua produtora, nasceu em 2010. O nome é uma homenagem à mulher mais importante da sua vida, a mãe: Maria da Luz. “Luz ao contrário é Zul. Pronto, eu sei, sou um sentimentalão incorrigível, mas... (comove-se)... a minha mãe incentivou-me a criar a produtora, esteve sempre ao meu lado, tínhamos uma ligação muito forte. A minha mãe morreu em 2016, depois de muito sofrer com um cancro que começou em 2012. Aliás, os meus pais morreram com um intervalo de 9 meses. Acho que ainda estou a apanhar esses cacos.”

Para explicar a relação extra-sensorial com a mãe, Fernando conta vários episódios. Um deles aconteceu quando foi à Sertã apresentar o seu novo projecto: um site (e respectivas redes sociais) sobre a mítica Estrada Nacional 2 (www.rotan2.pt), que pretende lançar uma profunda reflexão sobre o interior e não deixar cair toda uma extensa área que se viu relegada a um esquecimento doloroso. Fernando decidiu ir dormir à casa de família (já ambos os pais tinham falecido), por ficar mais perto (a apresentação era às 10h da manhã). “Acordei, arranjei-me, meti-me no carro. De repente, o rádio que ia a tocar calou-se e eu achei que devia ser falha de rede, ali no meio da serra. Quando voltou a funcionar, começou a tocar o Bolero de Ravel, que era a música preferida da minha mãe. Foi como se ela me estivesse a desejar boa sorte ou a dizer que ia correr tudo bem. Arrepiei-me todo. Mas aconteceu outra vez. Produzo uns ciclos de cinema em Monserrate e, um dia, fui fazer já não sei o quê ao Palácio, tinha de ir ao auditório... enfim, ia no corredor e começo a ouvir o Bolero de Ravel. Sorri. Ela tem a sua forma de me continuar a acompanhar.”

Fernando Centeio já produziu filmes de ficção, já produziu para televisão (foi ele o “pai” do programa “O Preço Certo”, que começou com Jorge Gabriel), mas cansou-se. Prefere, de longe, o documentário, ao qual se tem dedicado. “O que me faz feliz são projectos que abraço, que invento sozinho, ou que imagino com alguém. Aprendo muito mais, estou perto, estou dentro. Não quero crescer mais do que isto. A quantidade interessa-me menos do que a qualidade, o prazer que retiro a fazer as coisas. O primeiro filme que produzi já com a Zulfilmes foi o “Gesto”, em 2010. Um filme que retrata a surdez. E só passados 5 ou 6 anos é que consegui meter o filme em sala, porque ser produtor é também ser um maratonista. Um tipo não se pode cansar. Eu que o diga com o último documentário que produzi para o João Mário Grilo.” O produtor suspira. Fecha os olhos. Torna a respirar fundo: “O ‘Vieirarpad’ é a história de amor entre Vieira da Silva e Arpad Szenes. E está lindo, sem dúvida. Mas foram seis anos da minha vida. Divorciei-me, mudei três vezes de estúdio, perdi o meu pai, perdi a minha mãe.... toda uma vida aconteceu e eu continuava a produzir aquilo. Passei muita noite sem dormir, devo ter perdido anos de vida. Ainda não tem estreia marcada mas é uma belíssima história de amor, de dois artistas enormes. Tive a sorte de dormir na casa deles, em Yèvre-le-Châtel, e tive o privilégio de estar em contacto com uma série de detalhes das suas vidas, mas foi de facto extenuante.”

Diz isto mas, em mãos, tem mais não sei quantos projectos em curso, que é isso que o faz feliz. E por mais ocupado que esteja, tem sempre tempo para bater à porta, espreitar, e dizer aquele “Bom dia!” que faz a diferença. É um produtor de mão cheia. Mas, para mim, é, acima de tudo, um bom vizinho. Uma pessoa luminosa que o Sítio (que nos acolhe a ambos e à nossa hiperactividade comum) me trouxe. Uma boa alma, de fino recorte, possivelmente persa, seguramente de uma sensibilidade incomum. Obrigada, vizinho!

Airfree de bicheza? Ah, ele consegue com certeza!

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Não é novidade para aqueles que me seguem há mais tempo, poderá ser novidade para os que chegaram há menos, mas é uma certeza absoluta na minha vida: conheci o Airfree porque fui contratada para falar sobre ele, há já uns anos, recebi um cá em casa, e a partir desse momento (não logo, que não é magia, mas com o tempo de utilização) percebi que estava ali uma tecnologia que não podia deixar de continuar a divulgar. Tenho sido fiel à marca, tenho comunicado Aifree creio que todos os anos, já tenho três, um em cada quarto, e não vou achar demais quando tiver um em cada divisão da casa.

De maneira que sim, isto é publicidade, no sentido em que me pagam para terem este espaço de comunicação, mas não, não estou a falar nisto só porque sim (como de resto não faço com nenhuma das marcas com que trabalho). Acontece que este produto é de facto tecnologicamente espantoso. E mais: é feito por uma empresa 100% portuguesa, que exporta para mais de 60 países. E sabem como começou? Quando um pai, preocupado com as constantes crises alérgicas do seu filho, aplicou as suas habilidades de inventor e desenvolveu um equipamento capaz de eliminar, de forma silenciosa e sem exigir manutenção, os microrganismos e principais causadores das alergias

respiratórias do ar: vírus, bactérias, mofo, pólen, ácaros e alérgenos de animais. Como não ficar orgulhosa deste feito? Como não amar este pai, inventor, criador deste aparelho espectacular?

É que, não sei se sabiam (eu até me inteirar deste assunto não fazia ideia, e sou asmática), o ar interior de uma casa pode ser 100 vezes mais poluído que o ar exterior. Sim, caraças, leram bem! Cem vezes! Ora, a tecnologia exclusiva sem filtro da Airfree trata o ar dos espaços inteiros, destruindo 99,99% das bactérias, vírus, fungos e alérgenos do ar.

Ainda têm dúvidas? Eu percebo: quando a esmola é muita, o santo desconfia. Mas é que ainda há mais: o purificador Airfree é silencioso (não faz NENHUM som), não precisa de manutenção (a minha característica preferida – sou a pior para me lembrar de manutenções), não tem que se fazer absolutamente mais nada do que... ligá-lo a uma tomada!!!!!

E sabem o que é mesmo espantoso? É que resulta! Tive miúdos com crises de tosse que passaram como que por milagre quando o Airfree chegou cá a casa. Às vezes, porque alguém usou a tomada onde ele estava ligado ou por distracção, desligam-no (sobretudo ali no quarto dos mais velhos). Nota-se logo: um deles começa logo a tossir. Note-se que temos não um mas dois cães! Nesta casa há pelos, alergénios próprios dos animais, há pó, há ácaros, e depois deve haver humidades (ainda que não se vejam) e fungos e porcarias invisíveis (vírus e bactérias) mas danosas. O purificador elimina tudo. Reduz a quantidade de esporos presentes no ar e diminui a possibilidade de que surjam novas manchas de bolor, fonte de alérgenos. E atenção: elimina mesmo! Não se limita a retê-los, como acontece nos aparelhos com filtros de ar. 

Bom, e por último, mas não menos importante: a mais recente notícia é que um teste científico revelou a eficácia dos aparelhos Airfree, com a exclusiva tecnologia, no processo de destruição do vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19.

Malta, a Black Friday está aí mesmo a chegar mas podem usar o meu desconto (SONIA20) para obterem 20% de desconto em TODOS os modelos do site. Na Black Friday haverá desconto apenas num único modelo. De maneira que este será uma espécie de super aperitivo para a BF, sendo que talvez seja ainda mais apelativo do que o prato principal – uma vez que podem levar tudo com desconto! Têm até 25 de Novembro para usar!

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Nós #3: Dona Ajuda

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Rubrica sobre associações que ajudam pessoas. Porque juntos somos mais fortes.

 

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No princípio de tudo eram duas irmãs a recolher roupa e brinquedos, sobretudo no Natal, para dar a quem precisava. Mas, há 6 anos, a ajuda já tinha uma consistência e uma coerência que justificavam a criação de uma associação. Assim nasceu a associação Boa Vizinhança, que hoje se chama Dona Ajuda.

A Dona Ajuda fica no Mercado do Rato, em Lisboa. Naquele espaço emprestado pela Câmara Municipal de Lisboa, há várias lojas que vendem produtos em segunda mão. Como é que lá vão parar? Quem pode entregá-los? Quem pode ir comprá-los? Passamos a explicar, já de seguida. A ideia é simples e engenhosa ao mesmo tempo. A Dona Ajuda recebe tudo o que as pessoas já não queiram. Móveis, roupa, sapatos, brinquedos, livros, discos, loiças, electrodomésticos. Tudo o que possam imaginar. Essas coisas chegam e é feita uma espécie de triagem: tudo o que está impecável fica nas lojas, para ser vendido ao público (a preços muito simbólicos); tudo o que está medianamente bem conservado segue para bairros sociais que estão a precisar ou até outras associações que precisam de bens específicos; tudo o que está estragado e não é passível de ser entregue a absolutamente ninguém vai para a Associação Reto à Esperança, que vende a peso (possivelmente para futuras reciclagens daquele material, não sei).

Assim, naquele espaço bonito do Mercado do Rato, podem encontrar uma livraria, lojas de decoração, lojas de roupa de criança, de senhora, de homem, sapataria, loja de malas. E podem comprar, mesmo que tenham dinheiro para ir à Louis Vuitton. Há lá peças de roupa como novas, até de belíssimas marcas, vestidos de noite, até vestidos de casamento. Ao comprarem estão a ajudar de várias maneiras: por um lado, o dinheiro reverte na totalidade para a associação (e já veremos, mais adiante, o que é feito com ele), por outro, estão a dar uma nova vida a bens que, de outro modo, até podiam acabar no lixo. Há ainda a vantagem de pouparem umas coroas (mesmo que estejam financeiramente à larga, que isto nunca se sabe o dia de amanhã).  Quem não tem dinheiro para fazer compras (e a associação só aceita pessoas referenciadas por outras instituições) pode ir às lojas, escolher,  e levar sem pagar.

Então e o que faz a associação com o dinheiro das vendas ou dos donativos? Simples: sustenta-se, por um lado (há sempre despesas inerentes a uma organização), e por outro lado continua a ajudar pessoas que não precisam de bens mas de outro tipo de apoio. Por exemplo: imaginem alguém que precisa de uma prótese dentária. Sem ela, dificilmente consegue um emprego. Mas não tem dinheiro para a pagar (porque não tem emprego). É a típica pescadinha de rabo-na-boca da pobreza. Pois bem, a Dona Ajuda está lá para - nem mais - ajudar. Já pagaram próteses dentárias, óculos, consultas, compraram electrodomésticos, fizeram obras em casas. 

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Nestes anos de entrega do tempo a ajudar quem precisa, Rita Costa Pinto e a irmã Cristina Velozo (a presidente da associação) já viram muita coisa. Tanta que dava para escrever um livro, ou até uma colecção deles. Coisas boas, coisas más. Tanto de quem dá, como de quem pede. Rita esmiúça: "Há extremos. Uma vez apareceu aí uma senhora toda muito 'tia'. Trazia sacos de coisas para dar. Quando estávamos a ver, com ela, o que tinha, vimos um sapato sem par. Ficámos incrédulos a olhar para ela, e respondeu-nos com altivez: 'o que foi? Não pode aparecer alguém só com um pé?' Esse foi um dos episódios que me marcou. Já pela positiva, marcou-me a senhora que trouxe a roupa do marido, que tinha morrido. Ainda vinha com as etiquetas da lavandaria. Mandou limpar e trouxe tudo, impecável. Há de tudo, o bom e o menos bom. Mas ver a alegria de quem não tem nada e recebe a nossa ajuda supera qualquer situação menos agradável."

Entretanto, e como parar é morrer, a Associação Dona Ajuda tem-se transformado num polvo com vários braços. Fez uma parceria com uma associação cultural, a Pousio, e inauguraram a P.R.A.Ç.A, um projecto que é um espaço cultural que tem como matéria-prima as doações feitas à Dona Ajuda e que são reaproveitadas por artistas convidados para alguns espaços livres do mercado, que vão rodando, numa oferta cultural que se quer diversificada e rica, para envolver a comunidade neste dar e receber que (para rimar) era assim que sempre devia ser.

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Mudar de vida #23: Nuno Lanhoso

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Se tivesse de escolher um título para este texto, que resulta da entrevista com Nuno Lanhoso, seria qualquer coisa como: "O homem que não queria deixar fugir o tempo". Ou então apenas "Tempo". Este é um homem com uma muito clara noção da voragem dos dias, com uma lucidez precoce de que o tempo é como um pedaço de terra, que se esboroa entre os nossos dedos, se não o tratarmos como se fosse uma preciosidade. Porque é.

Nuno Lanhoso tem 30 anos, nasceu no Porto, e sempre quis ser médico. Garante que nunca sentiu pressão familiar nesse sentido, apesar de ser filho de médicos, neto de médicos, sobrinho de médicos. Talvez a pressão tenha sido apenas subliminar, ou então foi apenas um movimento lógico, quase óbvio, natural. 

Começou por entrar para Medicina Dentária (as médias para Medicina são o que se sabe) mas preferiu sair e ir estudar espanhol para se candidatar a fazer o curso em Barcelona. E assim foi. Saiu de casa da mãe aos 18 anos, rumo à capital da Catalunha, onde ficou até aos 26 anos. "Foi a melhor experiência da minha vida. Partilhei casa com dois colegas, que se tornaram dos meus melhores amigos, um que conheci na matrícula, o outro no metro. O curso foi extraordinariamente difícil, a coisa mais difícil que já fiz, mas não me entreguei a ele do modo missionário de que se fala. Estudei muito mas também me diverti muito."

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Nuno não estava particularmente feliz nos dois primeiros anos do curso. Muito teóricos, densos, a deixarem pouca margem para fazer mais do que só estudar. Até que descobriu o Bar Mediterrâneo, onde ia ouvir música ao vivo. E, um dia, talvez embalado por uma cerveja a mais, perguntou como podia fazer parte do leque de músicos. Sabia tocar guitarra, aprendeu sozinho aos 14 anos, como tantos, para ficar bem aos olhos (e ouvidos) de uma miúda: "Tinha visto a maneira como a rapariga de quem eu gostava na altura olhou para o meu amigo, que sacou de uma guitarra e começou a tocar, na minha festa de aniversário. Escusado será dizer que nunca mais o convidei. E fui aprender a tocar."

No Bar Mediterrâneo, marcaram-lhe então um teste e ele, no dia marcado, entrou no bar, deu meia volta, e tornou a sair. Tímido, faltou-lhe a coragem que a cerveja lhe tinha dado, dias antes. Ou isso ou talvez ele soubesse, lá no fundo, que entrar por aquela porta significava entrar num caminho sem volta (mas isto, claro, poderão ser floreados literários). Certo é que os responsáveis compreenderam o momento de fraqueza, e deram-lhe uma segunda oportunidade. Nuno tocou e cantou e acabou por ficar como um dos músicos do bar. Tinha 20 anos e estava a estudar para ser médico.

A vida ganhou, então, outro colorido. Os colegas de casa diziam que Nuno estudava nos intervalos da música. Era mais ou menos isso. "Eu estudava ao mesmo tempo que eles, para que, quando eles fizessem uma pausa, eu pudesse tocar e cantar, sem os incomodar. À noite, sempre que possível, ia ao bar. Ou para ouvir ou - melhor ainda - para tocar. E o meu percurso académico até melhorou, porque eu retirava dali um prazer que o curso não me dava."

Quando acabou o curso, aos 26 anos, Nuno foi fazer o ano comum no Algarve. "A minha média de fim de curso não me permitia concorrer ao Porto, e como tínhamos casa no Algarve, achei que era uma boa solução. O meu plano era estudar também alemão, no Algarve, e depois ir para a Alemanha fazer a especialidade em Medicina Estética. Só que a vida tem a mania de se meter nos nossos planos e aconteceram duas coisas: por um lado apaixonei-me pelo estilo de vida algarvio - uma vida com imensa qualidade de vida, praia, natureza, bom tempo; por outro lado, descobri o circuito de bares e hotéis com música ao vivo."

Nuno começou então por tocar nos bares mais duvidosos de Portimão, evoluindo para outros menos dúbios. Acabou a tocar num afamado hotel de 5 estrelas e ganhava mais em duas horas e meia por noite, todas as noites, do que no trabalho no hospital. A páginas tantas, acabou mesmo a ganhar o dobro, por vezes mais. "Sentia que aquilo era estranho. Eu era tão feliz a tocar e a cantar, que quase não parecia justo que me pagassem. Ou seja: eu sempre toquei, em casa, sem que ninguém me pagasse, e continuaria a fazê-lo, de borla. E, de repente, ali estava eu, a fazer aquilo de que gostava e a ganhar mais do que no hospital. E isto é muito revelador daquilo que nos incutem a vida inteira: a mensagem é que temos de trabalhar para ganhar dinheiro para nos divertirmos, se tivermos tempo! Eu estava a fazer as duas coisas em simultâneo (a ganhar dinheiro e a divertir-me) e ainda me sobrava tempo!"

Por essa altura, deu-se outro acontecimento que se juntou ao que parecia ser uma teia do destino para o fazer mudar de vida: "Estava a trabalhar no hospital quando conheci um médico de 30 anos que, de aspecto, estava totalmente acabado. Falámos um bocado sobre a vida dele e o retrato não podia ser mais angustiante: trabalhava 70 horas por semana, ganhava menos do que eu a tocar, e como tinha sido pai há pouco tempo ainda trabalhava ao domingo por fora, para que a soma fosse suficientemente digna. Ao sábado, único dia livre de que dispunha, acabava a dormitar no sofá, extenuado, sem força nem vontade para fazer mais nada. Quando ele acabou de falar, pensei: 'eu não quero isto para mim.'"

Aliás, aquele cenário não era novo. Nuno cresceu a ver a falta de tempo dos pais, ambos médicos. Não será despiciendo, de resto, esse seu contacto próximo com a falta de vagar na construção da sua vida, neste tomar de consciência daquilo que queria para si mas, sobretudo, daquilo que, definitivamente, não queria.

Seja como for, ainda que a vida sacerdotal dos médicos não lhe fosse de todo estranha, foi aquela conversa com aquele cirurgião que espoletou a granada que já estava na sua mão. " Tive a conversa com ele em Maio, despedi-me em Junho.

Na véspera avisou os pais. Ambos fizeram o que haviam feito toda a vida: se é o que queres, é porque deve estar certo. O pai talvez tenha mostrado uma maior renitência. Tanto assim que, em Setembro, foi visitá-lo ao Algarve, aproveitando para o ir ouvir tocar. "O meu pai nunca me tinha ouvido. E quando me reencontrou, no final da noite, disse que percebia. Que o meu olhar se modificava completamente quando estava ali. E mesmo a questão do tempo, da vida que eu tinha. Disse mais: 'no teu lugar fazia o mesmo'."

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Depois de um ano a tocar e a cantar no Algarve, amealhou dinheiro para fazer o mestrado em Medicina Estética, em Barcelona. Ia à universidade de 15 em 15 dias, no primeiro semestre. No segundo semestre ia uma vez por mês. Cansativo, mas exequível. E depois disso trabalhou, no inverno, numa clínica de implantes capilares no Porto: "Nessa altura costumava dizer, meio a sério meio a brincar, que era médico no inverno e músico no verão." Uma espécie de formiga e cigarra.

Uma parte da conversa que teve com o pai, porém, ficou a bailar-lhe na memória. Quanto tempo tencionava tocar covers em bares de hotel? Mais 5 anos? Mais 10? Até à reforma? Foi então que percebeu que estava na hora de dar o próximo passo. Pegou em todos os seus originais (escreve canções desde os 16 anos) e pagou do seu bolso a gravação num estúdio. A seguir, enviou para várias agências e ficou à espera. A maior parte não se dignou sequer a responder, outras disseram apenas que não estavam interessadas.

"Foi duro. Achava que aquilo era bom. Tinha posto de lado a Medicina para me dedicar à música e agora ninguém reconhecia valor àquilo? Não foi fácil e fiquei ali uns dias a bater mal. Mas depois... pensei que tinha duas opções: ou voltava para a Medicina ou tentava outra vez. Porque não saía da minha cabeça esta ideia: se já é um prazer tão grande tocar e cantar músicas que não são minhas para outras pessoas ouvirem, o que será ter uma plateia cheia de gente que está ali especificamente para ouvir o que eu escrevi, o que tenho para dizer? A adrenalina que isso deve ser... até me estou a arrepiar!"

E então sentou-se a escrever de novo. E sentiu que o fazia muito melhor. E usa, até, uma boa analogia, para descrever esta espécie de depuramento: "É assim como uma torneira de uma casa antiga. Quando a abrimos, a água que sai é amarela e não se deve beber. É preciso deixar correr um bom bocado, até aparecer água límpida. Acho que foi isso. Espero um dia olhar para trás e achar que esta água ainda era amarelada. Será bom sinal. Mas, para já, foi considerada suficientemente potável para ser bebida. Ainda não sei se será engarrafada mas... já se bebe. E isso já me deixa muito contente."

Nuno Lanhoso refere-se ao contrato assinado com a agência Sons em Trânsito, em Setembro de 2020, depois de ter enviado a segunda leva de originais, assim como ao single que acaba de lançar há duas semanas. Chama-se "Nem Desgosto de Amor" e é o prelúdio de um álbum que sairá no final do ano. Até lá, está previsto o lançamento de um segundo single. O músico-médico está nas nuvens e nem sabe como reagirá quando escutar a sua canção na rádio. "Até podes ter um acidente. O que vale é que és médico", brinco eu. Ele ri-se. "Preparei-me a vida toda para esse momento."

Para o que não estava preparado era para a avalanche de emoções que estão ligadas ao seu agenciamento e ao lançamento de um single para o mercado. Uma delas foi conhecer um dos seus grandes ídolos nacionais: "Ouvir o Pedro Abrunhosa dizer bem da minha canção foi avassalador." Não deixa de ser curioso que um dos ídolos deste homem que corre atrás do tempo tenha um álbum (o segundo, de 1996) justamente com o título "Tempo". Talvez não haja - mesmo - coincidências.

Esta foi a primeira entrevista do músico, a dar os primeiros passos na vida artística de forma oficial. Aproveito para o tranquilizar: não há-de ser mau prenúncio isto de dar a primeira entrevista a um blogue com o nome "Cocó". Afinal, sempre ouvi dizer que se deseja muita m*rda aos artistas quando se quer que tenham sorte. Por isso, Nuno, só pode ser bom sinal.  

Que Sítio é este, afinal?

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Tenho recebido muitas mensagens a perguntar coisas várias sobre o meu novo escritório: onde é, como funciona, se há outros para arrendar, se há mais pequenos, maiores, se há espaços de cowork, etc, etc, etc.

Não sei tudo, tudo. Mas já andei a conhecer os Sítios lisboetas (e a informar-me sobre os Sítios portuenses) e já há algumas coisas que posso esclarecer. O Sítio é uma empresa dentro de outra empresa. São, ao todo, dez Sítios, em Lisboa:

Alvalade, Areeiro, Bairro Azul, Marquês, António Augusto Aguiar, Praça da Alegria (Fintech House), Sete Rios, Lumiar, Visconde Santarém (Saldanha) e Alto de São João.

O meu fica no Alto de São João e é, para mim, o centro mais giro de todos. É como vos digo: não há quem cá não chegue e não fique de queixo caído pela pinta que tudo tem, pelo ar industrial e disruptivo, pelo terraço que parece estar pronto para os Santos Populares todo o ano (lindo e tão apetecível e onde se pode ir trabalhar ao sol no Verão, e onde se almoça divinamente a marmita que trazemos de casa), pelos escritórios enormes, todos eles em loft, pelo espaço comum onde se podem organizar exposições, conferências, aulas, workshops, jantares, eu sei lá, o céu é o limite. E até tem balneários! No outro dia a minha amiga Inês veio trabalhar para o meu escritório, convidei-a para ir treinar comigo à hora do almoço, voltámos, tomámos um duche, e continuámos a trabalhar. Não é perfeito?

No do Alto de São João, além dos escritórios, é possível comprar um pack de dias para se ir para lá trabalhar, ou mesmo só umas horas. Imaginem: trabalham em casa, têm um trabalho mesmo difícil para fazer e a vossa casa é um entra-e-sai, não estão a conseguir acabá-lo... pumba. Alugam o espaço, estão na santa paz do Senhor, e depois vão à vossa vida, sem mais encargos mensais que podem não querer nem precisar ter nas vossas vidas.

Há escritórios com um ar mais composto (o do Bairro Azul, por exemplo), há outros que também são assim bem doidões, tipo o de Alvalade (com cadeiras penduradas no tecto, a decorar), há um dos Sítios que parece um palácio, cheio de frescos nas paredes e no tecto, há um dos Sítios que não tem (ainda) o ar moderno e refrescante dos outros (o de Sete Rios ainda vai levar um "banho" de coolness mas tem imenso potencial, muito bem localizado e com escritórios óptimos).

Há várias modalidades, como explicava há pouco: podem trabalhar numa secretária um dia e adeus, gostei muito deste bocadinho. Podem trabalhar sempre na mesma secretária, que passa a ser vossa, por um preço definido (e onde guardam num módulo de gavetas as vossas coisas) e partilham a mesma sala com outras pessoas, mas aquela mesinha é só vossa (eles chamam-lhe Mesa Dedicada). Podem ter uma mesa dedicada sem estarem ao lado de outras pessoas (por exemplo, em Alvalade, há um corredor cheio de pequenos cubículos onde só cabe a secretária, a cadeira, o trabalhador e pouco mais, mas é bom para aquelas pessoas que preferem não estar numa sala aberta, à sua mesa, mas a olhar para outras pessoas (podem não gostar de pessoas - acontece-me muito, ou podem distrair-se com os outros, ou podem preferir aquela pequena privacidade de estarem resguardados de olhares alheios). Podem ter um escritório só para vocês, inteirinho, onde até festas podem dar (com segurança Covid, claro está). Enfim, há de tudo, pela cidade inteira.

Vantangens extra que o Sítio oferece: uma comunidade de "sitiados", como gosto de lhes chamar, que podem encontrar sinergias e dinâmicas e ideias e, de repente, estão todos a trabalhar num projecto comum, porque muitas cabeças trabalham melhor do que uma. 

Por outro lado, é bom ter um lugar para receber correspondência, ter uma morada fiscal da empresa e acesso a salas de reuniões e auditórios. Caramba, agora que penso nisso, há de tudo no Sítio. Há internet, há copa onde se pode aquecer comida, lavar loiça, guardar coisas em frigoríficos partilhados... é tão fixe!

Também há eventos a que podemos ir - por pertencermos ao Sítio -, descontos que temos por sermos membros, e até a possibilidade de trabalharmos em vários dos escritórios pela cidade: imaginem que tenho um cliente que me pede para reunirmos pela zona do Marquês, que é mesmo o que lhe dá mais jeito. Muito bem: marco reunião no Sítio do Marquês e... feito! Ou seja: há uma grande mobilidade entre os "sitiados", que é coisa que me agrada imenso.

No Porto, há já 3 Sítios: no Campo Alegre, no Bom Sucesso e Costa Cabral. E é lá, num deles, que farei um dos próximos Clubes de Leitura do Porto (o de Lisboa do mês passado já fiz em Lisboa, no terraço, e foi uma delícia).

E é isto. Não há dia em que não agradeça por este encontro. Juro. Sempre que aqui entro (escrevo esta prosa na minha mesa, montada por mim, olhando para tudo o que aqui está, que eu pintei, lixei, montei) sinto que cheguei ao meu espaço, ao meu oásis, ao lugar onde consigo ouvir os meus pensamentos e pôr as minhas ideias em prática. Sinto-me em casa, cada dia mais. E isso é mesmo bom.

Preços: há de tudo, mas consegue-se uma secretária desde 130€ por mês.

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www.sitio.pt

Uma semana a dois

Desde que temos filhos que fazemos uma semana de férias sem eles. É ponto assente, e ponto final. Há quem não possa, há quem não queira, há quem sinta calafrios só de imaginar uns dias de diversão sem as suas bonitas crias, há quem simplesmente não consiga por não ter com quem os deixar, por não ter dinheiro para ir para parte alguma, por ter filhos com problemas de saúde e não confiar em ninguém que fique com eles (algo que mexe comigo por dentro mas, sobre isso creio vir a ter notícias em breve), por não ter amigos que os levem para que, simplesmente, se barriquem nas suas próprias casas, sozinhos, a ver séries, a beber vinho e a fazer o amor. Há de tudo nesta vida, já o sabemos, e ninguém tem de chatear ninguém: nem os que podem e querem têm de evangelizar os outros, nem os outros têm de censurar os demais. 

A única excepção a esta regra que temos foi quando a pandemia nos trocou as voltas. Isso e a doença da minha mãe. No ano passado fizemos 20 anos de casamento, data que pedia festejo de arromba (leia-se viagem longínqua), mas a minha mãe estava em tratamentos, e acabou a ser internada no dia seguinte ao do nosso aniversário, pelo que o mais longe que fomos foi ali ao Alentejo para regressar e levar com a bomba atómica de a ter por um fio. Mas safou-se, que é rija, e a equipa de Santa Maria trabalhou que foi uma beleza.

Este ano tínhamos pensado em ir para longe, também. Mas depois há Covids por todo o lado, parece que a gente os vê aos saltos, e regras, e restrições, e aquele receio de que nos fechem as fronteiras e fiquemos ad eternum a viver num local paradisíaco mas infestado de bichezas, sem cuidados hospitalares de primeiro mundo, e longe dos nossos filhos. Ainda pensámos em Itália (queríamos alugar uma mota e fazer a costa Amalfitana), mas até à data em que marcámos tudo ainda estava em vigor a regra de confinamento de 5 dias obrigatório para turistas, mesmo que brandissem o teste negativo diante dos olhos das autoridades. E, sendo assim, chapéu. Começámos então a escrutinar o nosso país, tão bonito também, Douro? Alentejo? Gerês? Zona Centro? Açores? Madeira? Ganhou a Madeira.

Já tínhamos ido à Madeira algumas vezes, sozinhos, com miúdos, mas desta vez foi absolutamente perfeito. Não sei bem explicar se foi por estarmos tão sequiosos de estarmos a sós (os confinamentos engoliram-nos um bocado o namoro), não sei se foi por termos alugado uma mota (o que permitiu uma dose de diversão extra - as motas são um perigo mas oferecem uma sensação de liberdade e alegria diferentes), não sei se foi por termos escolhido tão bem o hotel (um mamarracho enorme mas por dentro com muita pinta e com uma piscina linda e totalmente em cima do mar), não sei se foi por termos vivido várias aventuras (desde um frio de rachar na subida ao Pico do Areeiro que nos fez gastar 90 brocas na loja do senhor Juvenal - uma loja de souvenirs mesmo lá em cima - só em dois pares de calças de fato de treino, um casaco de malha grossa, umas luvas e um corta-vento; sem esquecer a excelentíssima bebedeira na Taberna da Poncha; entre outras peripécias), se foi por aqueles mergulhos no mar frio, se foi pelas garagalhadas a fazer fotos, se foi pelo deslumbrante passeio pela Levada do Caldeirão Verde e pela Levada do Caldeirão do Inferno. Não sei. Sei que foi perfeito, que viemos de lá renovados, que reencontrei o meu namorado (de quem perco tantas vezes o rasto, de tão assoberbado que anda com um trabalho que roça, por vezes, a insanidade) e isso é, sem dúvida, um privilégio. Quanto à Madeira... fiquei cheia de vontade de voltar. Que ilha abençoada. 

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