Conhecemo-nos quando eu trabalhava no DNA (para quem não sabe, foi um suplemento extraordinário do Diário de Notícias). Convidei-o para uma rubrica, passámos um dia juntos e, depois, voltei a sugerir o seu nome, passado um tempo, para lhe fazer a grande entrevista do suplemento. Voltámos a passar um dia juntos, em casa dele. Fomos às compras, fiz com ele algumas das coisas que faziam parte da sua rotina pouco rotineira, almoçámos, jantámos, e só nos despedimos já era tarde, noite dentro.
Depois desse dia, já lá vão vinte anos, ficámos próximos durante algum tempo. Mas depois cada vez menos. E agora já não nos falávamos há muito.
Hoje o Rogério partiu, apesar de, na verdade, já ter partido há uns meses. Sei que teria preferido ir-se logo, de uma vez, porque este estado em que se encontrava não serve a ninguém, muito menos a alguém como ele. Tenho várias memórias do Samora, e até coisas a que me apresentou. Uma delas foi o fabuloso álbum Felt Mountain, dos Goldfrapp, que ainda hoje me acompanha. Neste precisamente é o que estou a escutar, e o que ouvi toda a tarde, em que estive a passar esta entrevista do papel para o computador. O podcast ia ser trabalhado hoje mas... que se lixe, fica para amanhã.
Esta foi a entrevista que lhe fiz, no ano 2000.
Até um dia, Rogério (se bem que ele não acreditava em reencontros no além e eu, para ser honesta, também não).
Entrevista: Sónia Morais Santos
Fotografia: Augusto Brázio
Começou por ser uma entrevista como todas as outras. Um telefonema, uma mensagem deixada no gravador de mensagens, "Fala a Sónia, do DNA, gostava de te entrevistar, liga-me assim que puderes, obrigada." Depois foi o encontro, marcado numa bomba de gasolina na auto-estrada de Cascais. "Deixas lá o carro e depois vamos no meu", e a seguir, a viagem até uma aldeia perto de Colares, curva contra curva sob um intenso nevoeiro, "Já viste isto? É uma vergonha esta estrada estar assim, sem traços, nem se percebe onde é que a estrada acaba, há acidentes todos os dias, mas ninguém se rala com isso."
Começou por ser uma entrevista como todas as outras. Na casa do entrevistado, como tantas. Acompanhada com chá de tília, eucalipto e menta, e pão de ló com calda. Seguida de perto pela chuva que insistia em bater nas vidraças. Aconchegada por uma lareira quente.
Rogério Samora tem 42 anos de vida. Há mais de vinte que anda empoleirado em palcos e projectado em telas e metido dentro das televisões de todos nós.Tantos anos a construir sonhos têm a vantagem de o transformar numa pessoa numa pessoa com quem vale a pena conversar uma tarde inteira. Ou um dia inteiro. Tantos anos a criar ilusões têm, por outro lado, a desvantagem de o tornar demasiado desperto para as crueldades da vida. Da vida real, essa mesmo, que se vive fora da sala escura do cinema. E é por isso mesmo que, às vezes, é raiva, é angústia, é desilusão o que lhe vai lá dentro. E é também por isso que esta entrevista, que começou como todas as outras, não foi como todas as outras.
Rogério Samora é actor. Isso basta-lhe para viver e ser feliz. Pelo menos enquanto constrói sonhos, esquece as crueldades da vida. Deve ser por isso que constrói tantos.
Proponho que comecemos por falar de um fenómeno recente. Por que é que, hoje em dia, todos os miúdos a quem se pergunta o que querem ser quando forem grandes, respondem, invariavelmente, que querem ser actores?
- O ser humano tem uma necessidade de ser conhecido publicamente. É uma forma de poder. Ter dinheiro e ser conhecido são sinónimos de poder. E os miúdos acham que ser actor é uma profissão fácil, ganha-se dinheiro depressa, e é-se conhecido rapidamente. Esquecem-se que se vive pouco. Trabalha-se muito. Morre-se cedo.
Mas há outro fenómeno que contradiz essa tua teoria, que é: apresentadores de televisão e manequins, que já eram conhecidos e já ganhavam muito dinheiro, a quererem ser actores. O que é que os motiva, a esses?
- É o pensar: "É tão bom, por momentos, poder ser outra pessoa. É tão bom, por momentos, ter coragem para fazer ou dizer outras coisas que eu não tenho coragem. É tão bom ser amado. É tão bom ser admirado." Para essas pessoas é isso. E depois é assim: todos nós temos um pouco de loucos e de actores. Tu quando te vestes e te maquilhas, de manhã, estás a exacerbar o teu lado de actriz. Tu vais representar...
Sim, mas o texto é da minha autoria... não digo textos de outras pessoas. Sou sempre eu.
- Ah, mas eles também! Eles representam-se a si próprios... Achas que a Catarina Furtado alguma vez representou uma personagem? Ela faz dela. Faz sempre dela. Tanto que - é engraçado! - todas as personagens têm o sinal no mesmo sítio! Os sinais tapam-se com maquilhagem.
Essas pessoas - apresentadores e manequins - ganham mais do que os actores, por trazerem consigo o peso de ouro da popularidade, ou não?
- Não. Não. Esses são tão estúpidos que nem sequer percebem isso. Podiam ganhar o dobro do que ganham. Mas eles só querem é sair nas capas das revistas. É tão fácil, nos dias que correm, ser capa de revista. A minha profissão, neste momento, está ao nível de empregada de balcão.
Isso é verdade. Antigamente, para se ser capa de revista era preciso ter-se construído alguma coisa, ter obra feita. Agora basta viver numa casa com câmaras de televisão por todos os lados. Não é preciso mais nada para ser capa de revista...
- Sabes que eu, depois de ver o Otelo Saraiva de Carvalho naquele vídeo-clip, já nem falo do Big Brother. Porque já foi além do Big Brother. Tu viste aquilo?
Vi.
- E choraste?
Não diria tanto.
- Pois eu não sabia se havia de rir, se havia de chorar. Quando aquilo começou, ainda pensei que fossem fazer qualquer coisa tipo "A revolução foi um acto de amor". E aí eu compreendia, por muito discutível que o vídeo fosse em termos de gosto. Agora "A revolução falhou"?
O que é que achas que lhe passou pela cabeça?
- Acho que está senil. Que não pensou no que estava a fazer. Não sei se lhe pagaram, espero que não tenham pago. Se lhe pagaram, é porque está com dificuldades financeiras e precisava do dinheiro. Ou então é um inconsciente. E, se assim for, temos que pensar se o 25 de Abril não terá sido, também, um acto de inconsciência.
De todas as opções que se põem, a menos má para nós que vimos o vídeo-clip é, ainda assim, a que dá o senhor como senil.
- É. Ainda é o menos mau. No sentido em que também nós, com a idade, podemos vir a passar por esse problema. Mas eu ainda considero uma outra possibilidade, sabes? Ele pode ter querido vingar-se do filme "Capitães de Abril". Pode ter querido dizer: "Fui eu que fiz o 25 de Abril, não foi o Salgueiro Maia". Seja como for, acho que nós, portugueses, devíamos processá-lo. A sério! Devíamos metê-lo em tribunal. O Otelo fez muitas coisas com as quais eu não concordo. Mas é uma figura emblemática daquele dia. É um nome, uma referência. Era um ídolo. E não se despiu, porra! A audiência feminina tinha subido muito.
Dormiste mal nessa noite...
- Dormi, dormi. Fiquei mal disposto. Era uma e meia da manhã e ainda aí estaca sentado, de boca aberta.
Vamos, então, mudar de assunto. Nasceste em Lisboa?
- Não. Nasci na Amadora, em casa, assistido por uma parteira, e a minha avó disse: "Traz já o menino para Lisboa, porque aí não há nada!" E eu vim logo de táxi, em direcção a Lisboa, muito embrulhadinho, para casa da minha avó, com quem fui criado até aos sete anos.
Porquê?
- Porque os meus pais, de facto, não tinham condições para me criar. Estavam a construir a sua vida... A minha avó não vivia com tantas dificuldades, se calhar acharam que era melhor para mim ir viver com ela. Depois, aos sete anos, organizaram-se financeiramente e eu fui viver com eles.
Fala-me dos teus pais.
- São uns excelentes pais, sempre foram. Nunca passei fome, o meu pai sempre se preocupou em alimentar-nos, em trabalhar para que não nos faltasse nada. Só lhes posso agradecer por não me terem imposto nada. Nenhuma orientação, nem religiosa, nem política, nem profissional, nem sexual. Deram-me a liberdade de escolher o meu caminho.
O que é que eles faziam?
- A minha mãe trabalhava numa tabacaria no Café Califórnia - que hoje é um bar -, mas quando eu nasci deixou de trabalhar. O meu pai trabalhava no Laboratório Normal, em Lisboa, que depois se mudou para Mem-Martins. É um grande homem, o meu pai. Começou a trabalhar aos 13 anos, foi um auto-didacta. Com muito trabalho conseguiu chegar a preparador. Respeito-o muitíssimo porque a vida não lhe foi fácil. Hoje consigo percebê-lo.
Hoje?
- Quando era miúdo e pedia ao meu pai uns sapatos, ele dizia-me "Com a tua idade andava com uns sapatos de corda e era eu que os fazia". Na altura não o compreendia. Hoje compreendo.
Achas que foste um mau filho?
- Acho que fui um filho rebelde e às vezes parvo. Tenho pena de não ter convivido mais com o meu pai. Porque era moda ser rebelde, ser contra o pai. No outro dia fomos jantar todos, era o aniversário da minha mãe. E de repente dei comigo, aos 42 anos - eles têm 62 -, a preocupar-me com o que estavam a comer: os molhos, os fritos, as gorduras... Sabes o que é que eles fizeram? Olharam para mim e encolheram os ombros. Não ligaram nenhuma. Os papeis invertem-se, é engraçado.
E a tua avó?
- A minha avó talvez seja a pessoa por quem eu tenho mais carinho. Não quer dizer que goste mais dela do que dos meus pais! Gosto de forma diferente de cada um, gostando dos três, muito. Chama-se Lurdes, a minha avó, e faz-me pena estar envelhecida. Faz-me pena que, quando está doente, vá para a Caixa de Providência às sete da manhã para arranjar uma consulta. Eu podia pagar-lhe uma consulta privada ou levá-la a um hospital particular. Mas ela prefere ir para a Caixa, o que é que eu hei-de fazer? "É caro, filho, é caro, é caro!" A minha avó... Devia vê-la mais! No outro dia telefonou-me e disse-me: "Oh neto, já não te vejo há tanto tempo que já não me lembro da tua cara!"
Há quanto tempo é que não a vês?
- Aí há uns três ou quatro meses. Mas faz-me tanta pena vê-la assim... Faz-me impressão. Era tão bonita. Ainda é. Está é toda torta, coitadinha.
É bom que arranjes tempo para a visitares. Porque depois ficas arrependido para sempre...
- Sabes, eu tenho uma relação com a morte muito especial. Isto, se calhar, é um pouco cruel mas eu já resolvi a morte na minha cabeça. Aceito-a. Todos nós temos que ter consciência de que vamos morrer. Isso faz-nos viver melhor. Os nossos amigos morrem. Os nossos familiares morrem. O pai e a mãe morrem. Eu aceito a morte como uma parte da vida.
Isso é mesmo assim?
- É. Mesmo. A sério. Morreu, morreu. Pronto. Se tiveres que chorar, choras, se tiveres que ter pena, tens pena. Mais: sou contra os cemitérios. Não sei se consigo cremar os meus familiares mais chegados. Não sei se os outros, que estão vivos, me vão deixar fazê-lo, mas isso é que é higiénico. Isso é o que se deve fazer. Ser comido por bichos, uma pessoa que eu amei? Ser comida por bichos? Que horror! Estar ali a ocupar terreno onde se podem fazer escolas, hospitais... estar ali a fazer parte do negócio que enche os cofres à Câmara? Não, isso não! Mas é muito difícil vivermos com a morte, aceitarmos a morte, encararmos o facto de que acabamos um dia. Não acredito que haja vida depois da morte, não havia espaço lá em cima. Morremos, morremos. Temos que aceitar que somos matéria. Orgânica.
É óbvio que não tens fé...
- Fui educado de uma forma católica, num espírito católico pela minha avó. Fiz a catequese e tudo. Fé? Tenho fé em mim. Acho que as pessoas precisam de um Deus, ou de algo que não conheçam, para viverem, para se desculparem, para pedirem, para acusarem, para se revoltarem. Eu não acredito que Deus exista. Acredito que cada um de nós é Deus, ou pode ser Deus. Que a fé é bonita. É bonito termos fé. Mas fé na esperança, na vida, em nós, na paz.
Tens ali um crucifixo deitado no móvel. Não está pendurado de propósito?
- Com certeza! Bolas! O homem está crucificado há dois mil anos... Será que nós não temos outra forma de o honrar e de lhe prestar homenagem? Tirando-o da cruz, deitando-o... Coitado do homem! Ele era só um homem! Um homem! Há dois mil anos que se servem dele, tal qual como se servem da Marilyn Monroe. Há dois mil anos que ganham dinheiro com ele. Ainda não o tiraram da parede nem da cruz. Isso revolta-me. Isso e o facto de a religião ser motivo de tantas guerras. Como agora está a acontecer: em Terra Santa, tanta bomba. Qual santa qual carapuça! Se Deus existisse achas que aquilo acontecia?
Às vezes temo que Deus seja um terrível sádico.
- Se Deus algum dia existiu, já desistiu. Já pôs a mão na cabeça, e disse: "Mas o que é que eu criei?" Mas acho que Ele não criou nada, foi criado. Porque nós, homens, precisamos disso. Porque não somos tão fortes como pensamos.
O que é que a tua avó fazia?
- A minha avó era professora de danças de salão na Escola Mendes Pereira. E depois foi gerente do Café dos Pretos, na Feira Popular. Era muito avançada para a época. Lembro-me que levou calças, uma vez, quando fomos a Chaves visitar uns primos. Toda a gente a gritar: "Parece um homem! Uma mulher não veste calças!" Ela estava-se nas tintas. E ainda não te falei na minha bisavó.
Bisavó?
- Chamava-se Rosalina. E tinha muitas rugas... Muitas! Aquilo já nem eram rugas, eram estradas, caminhos! Acho tão bonito, a idade marcada num rosto. É como se cada estrada daquelas tivesse um romance para contar. A minha bisavó Rosalina tinha a cara cheia de romances. E vendia peixe. Eu comia peixe muito bom quando era miúdo. Devo ser das poucas crianças que gostava de peixe.
Que idade tinhas quando ela morreu?
- Tinha 20 anos. Ela era uma pessoa fabulosa, lindíssima. Quando eu e a Leonor decidimos casar, a minha bisavó disse que a queria conhecer. E a primeira coisa que fez quando a viu foi apalpar-lhe as mamas, a ver se eram boas para ser minha mulher.
Isso é espantoso...
- É. Ela era assim. Uma pessoa extraordinária....
E então? Qual foi o veredicto?
- Casei.
Que idade tinhas?
- Eu tinha 19, ela tinha 29. Era uma mulher linda. Continua a ser.
Ela não tinha nada a ver com o teatro?
- Nada. Era funcionária pública, uma mulher normalíssima. O meu disse-me: "Tu é que sabes". E eu casei. Não tive filhos...
Por opção?
- Não. Falhou por duas vezes. Depois não tentámos mais. Também não me arrependo de não ter. Não é objectivo de vida para mim.
Não tens pena?
- Não penso nisso. Percebo que o Belmiro de Azevedo pense. Eu não!
Não digas isso... Fica-te mal.
- Eu não tenho legado nenhum para deixar!
Mas ter um filho não é isso. Não é só isso!
- Então é o quê? É o ensinar? É o quê?
É dar a mão, ensinar, proteger. É teres ali um ser humano que é uma parte de ti, que se parece contigo, que é teu...
- Ah! "Eu fiz isto, que é meu, é igual a mim, que bom que eu sou". É isso?
Mau... Estamos a desconversar.
- Não penso nisso, a sério. E gosto de crianças, muito. São lindas. Agora, eu não sacrificaria a minha carreira nem por filhos nem por um amor.
Então agradeces o facto de não teres tido filhos.
- O que tem que acontecer, acontece. Não aconteceu, não aconteceu...
Mas ainda bem.
- Sei lá! Não aconteceu, sei lá. Só sei que não preciso de estar casado, não preciso de filhos, não preciso disso para viver.
Mas porque é que estás tão agressivo, de repente?
- Porque me irrita essa pergunta, percebes?
Não. Porquê?
- Porque é que temos que ser todos iguais?
Não temos que ser todos iguais. Eu não disse nada disso.
- Então, pronto. Ok. Mas sou fértil. Isso eu sei.
Quanto tempo estiveste casado?
- Treze anos. A Leonor foi uma mulher que me ensinou muito que me apanhou numa fase em que eu não estava ainda preparado para ser homem, para assumir responsabilidades. Uma mulher que me aturou coisas horríveis. Horríveis. Hoje, olhando para trás, era capaz de ir de joelhos daqui a Fátima para pedir perdão. É uma mulher que eu estimo muito e que era - e é - linda de morrer.
São amigos?
- Somos amigos, muito amigos.
Deixaste de acreditar no casamento.
- Acho uma chatice viver com alguém. Acho muito bom “ter” alguém, e sermos “tidos” por alguém. Agora, viver no mesmo espaço com outra pessoa, consecutivamente, diariamente, não. Quero ter espaço para mim, quero ter tempo para mim, quero acordar e não ver ninguém. Ou ver alguém às vezes. E depois tenho sempre a minha Casimira, a minha terceira mãe, uma mulher adorável . Trata de mim, trata me da casa, atura-me. É a ela que telefono quando estou doente. E ela vem dar-me o pequeno almoço e aconchegar-me o saco de água quente e ver se a febre já baixou.
Vamos recuar novamente. Que tipo de “enfant” eras tu?
- Terrible. Terrible et seul. Gostava muito de estar sozinho. A controlar, à distância. E tinha muitas namoradas ao mesmo tempo.
Sempre foste assim giro ou és como o vinho do Porto?
- Desculpa?... Perdão?
Vá, anda. Deixa de chiliques e diz-me lá se eras giro ou não na adolescência.
- Não sei se era giro. Tinha muitas namoradas.
E achavas que era porquê?
- Ouvia-as. A coisa que as mulheres mais gostam é que um homem as oiça. Qualquer homem que tenha paciência para ouvir uma mulher, e que a faça rir de vez em quando, e que lhe saiba fazer uma festa e dar-lhe um beijo na altura certa, tem essa mulher nas mãos.
E tu aprendeste isso cedo.
- Acho que não aprendi, acho que foi natural.
Um dom que nasceu contigo.
- Estás a rir-te de quê? (risos)
Começaste a fazer teatro muito cedo, na escola...
- A primeira vez que pisei um palco foi na voz do operário. Tinha 5 anos.
Qual era o teu papel?
- Fazia de marinheiro e dançava. Fazia assim aos bracinhos, para cima e para baixo. Tenho uma fotografia, não sei onde está.
Depois, ao longo dos anos, foste fazendo teatro na escola e nas férias. Percebeste logo que era aquilo que querias para a tua vida?
- Não! Eu sabia lá o que era aquilo... era um divertimento! O que eu queria era ser médico.
Médico?
- Sim. Porque a minha avó tinha doenças e eu queria tratá-la. Não te sei explicar porque é que decidi ser actor, porque é que escolhi ser actor, mas acho que foi a minha avó que, a pouco e pouco, me foi viciando no escuro, nas luzes, no sonho. Porque me levava ao Odeon para ver os filmes todos do Joselito, do Tony de Matos, da Sara Montiel...porque me levava à Revista. Porque me ia pôr ao cinema Royal, para eu ver às escondidas filmes que não eram para a minha idade. Ela ia me lá pôr, depois ia-me buscar. E as danças de salão e a Feira Popular... tenho um desejo há uns 10 anos que hei-de concretizar, espero que em breve. Talvez para o ano. Quero fazer “Os cavalos também se abatem” no Poço da Morte da Feira Popular.
Queres encenar?
- Quero. Com patins. À exaustão. A peça é muito actual, sempre foi. Todos nós tentamos aguentar até ganharmos. Quero fazer isso. Vou concorrer a um subsídio. Não preciso que me dêem muito dinheiro, depois arranjo uns patrocínios.
Nunca encenaste?
- Só em miúdo. Fiz “A princesa que guardava patos”.
Mas nunca encenaste por falta de vontade, não era chegado o momento?
- Sempre que me apeteceu fazer encenações ou apresentar trabalhos em que a responsabilidade era toda minha, tive vergonha. Tive medo das críticas. Disse para mim: “quem é que tu pensas que és para fazer isto?” Só que agora acho que estou a perder um pouco esse medo, essa vergonha. Nós temos que fazer as coisas que queremos enquanto vivemos.
O teu pai não era dessa opinião quando lhe disseste que querias ser actor.
- O meu pai não reagiu bem. Disse-me: “OK! Então a tua avó paga te o curso que eu não pago nada disso!” E assim foi. A minha avó pegou numa as economias que tinha e eu fui viver para casa dela. Durante o dia trabalhava, vendia electrodomésticos numa casa que se chamava “Triângulo Vermelho”, na Almirante Reis. Acartava com electrodomésticos para quintos e sétimos andares... e à noite ia para o Conservatório.
Mas não acabaste o Conservatório.
- Fiquei me pelo 2º ano. Porque quando pedi ao Conservatório para passar a ter aulas de dia, disseram-me que tinha de repetir o 2º ano. Aí desisti. Achei que estava a perder tempo. E comecei a fazer figuração. Muita figuração. E fui aprendendo a ver. Cinema, teatro.
Perdoaste ao teu pai por não ter aceitado bem a tua decisão de queres ser actor?
- Não se trata de perdoar. Trata-se de compreender. O meu pai, como homem lutador que sempre foi, estava apenas a tentar proteger-me de uma vida de insegurança material. O teatro era uma vida de constante insegurança. Não se sabia o dia de amanhã. Ainda hoje é assim.
Estreaste-te na Casa da Comédia. Quanto tempo é que lá ficaste?
- Cinco anos. Aprendi imenso na Casa da Comédia. Fiz de tudo. Deitei abaixo paredes, pintei paredes, fiz assistência de encenação, assistência de produção, produção, vendi copos, vendi bilhetes, arrumei pessoas. A vida não deve ser fácil. Tem que ser difícil. Sabe-nos melhor viver quando a vida tem as suas contrariedades. É isso que as pessoas que querem aparecer nas capas das revistas esquecem. Que a facilidade não faz a vida saber melhor. No outro dia li esta frase brilhante de uma menina que anda para aí: “Durante 30 minutos incorporo a personagem”. Tu acreditas nisto?
Não sou atriz. Mas já vi que tu não acreditas.
- Por amor de Deus! “Incorporo a personagem”?! Ouve lá, o que é isto? Não se leva a personagem para casa, não se “incorpora” a personagem. Isso é esquizofrenia! As pessoas que dizem este tipo de coisa têm que ser tratadas. A sério! Já fiz psicanálise. Não é nenhuma vergonha.
Já fizeste psicanálise? Deixa-me adivinhar: andavas a incorporar personagens e a levá-las a todas para casa.
- Era, era! A todas. Era uma multidão lá em casa... isso é de doidos! Quando leio estas coisas rio-me, rio-me. Ó pá, ser actor implica muito trabalho. Muito. Mas quando o trabalho acaba, somos como outra pessoa qualquer, vamos para casa, vamos ao cinema, comemos, dormimos... não andamos à deriva, sem saber se somos nós, se somos a personagem... Por favor! Ser actor não é isso.
O que é ser actor?
- É tão difícil explicar... No dicionário virá qualquer coisa como: “Pessoa que interpreta outras personagens”, mas é muito mais do que isso. É uma busca, é uma procura, é uma motivação, é trabalhar com emoções, com sentimentos, é mentir, é iludir... É reivindicar, revolucionar, influenciar, imitar... É trabalho, trabalho, trabalho.
Em teatro ou em cinema?
- Gosto muito de fazer teatro. Imenso. Foi o teatro que me fez descobrir em mim o desejo e a vontade de ser actor. Mas o que eu gosto mesmo, mesmo, mesmo, é de cinema. Cada vez gosto mais.
Gostas de te ver na tela?
- Não gosto nem desgosto. Acredito ou não acredito. De há uns tempos a esta parte até já consigo uma coisa fantástica que é abstrair-me que aquele sou eu. Distancio-me de mim e consigo ver apenas aquele actor a representar. E aí vejo se esse actor me convence ou não.
Consideras-te um bom actor?
- Não sei. Não sei responder a isso. Considero que muitas vezes já cumpri os objectivos que me eram pedidos. Não sei se sou bom ou se sou mau actor.
Isso é modéstia... Tu tens que saber responder a isso. Se sabes distinguir um bom actor de um mau... se até já consegues distanciar-te de ti próprio e veres se esse tipo- que és tu - te convence ou não... como é que não sabes dizer se és bom ou mau?
- Não sou capaz de te responder a isso.
Está bem, podes não ser capaz de por uma questão de modéstia... Mas sabes. Lá dentro sabes.
- Não, não sei. Há trabalhos em que gosto do que fiz, e fico contente. Há outros em que não gosto do que fiz, e não fico nada contente, e evito vê-los.
Diz-me com sinceridade: nunca te deixaste deslumbrar?
- Quando fiz os “Queridos Inimigos” ganhava muito dinheiro. Ganhava 400 contos por programa. Foram 52 programas, faz as contas. Deslumbrei-me. Acho que foi a fase mais tonta da minha vida. Mais parva. Mais idiota. Primeiro porque estava a fazer uma coisa com a qual não concordava. Depois porque estava a ser arrasado pela imprensa e pela crítica. Era gozado e custava me porque pensava assim: “Eles não sabem que não é isto que eu quero fazer estou a fazê-lo apenas para poder ter uma independência material, para poder comprar a minha casinha”.
Foi só um deslumbramento pelo dinheiro ou estarias também embebedado com a fama?
- Também com a fama, infelizmente. Acho que sim, que estava.
Repetias?
- Não.
Mesmo que tivesses que comprar a casa?
- Não repetia. Não! Pedia um empréstimo. Não repetia.
Fez muita mossa na tua carreira o “Queridos Inimigos”?
- Não, graças a Deus não. Pouco tempo depois faço o “Party”, com o Manoel de Oliveira. O Manoel de Oliveira adorava o “Queridos Inimigos”.
Adorava? Estás a brincar?
- “Gosto de te ver no programa. É engraçado”, dizia ele.
O que é que lhe dizias, tu?
- Nada. Não lhe dizia nada. “Sim, mestre”. “Obrigado, mestre. Obrigado, mestre”. Gosto muito do Manoel.
É “O” Mestre...
- É. Ainda há-de trazer um Óscar para este país. Póstumo. De consagração. É um grande cineasta. O Antonioni também está vivo. São os últimos. Os últimos dinossauros.
Tens dele essa imagem de mestre, no sentido de pai? Segundo pai?
- Tenho, tenho. Aprendi muito com o Manoel. Aprendo sempre.
Como é trabalhar com O Mestre?
- Se disseres bem o texto, e devagar para ele o poder ouvir, ele dá-te total liberdade para criares. Se quiseres ficar parada, ficas. Se quiseres representar, representas. Só tens é que pôr as mãos onde ele quer, fazer as marcações que ele quer, olhar para onde ele quer. Nisso é muito rigoroso. É tão bom trabalhar com ele...
É o melhor que te pode acontecer?
- É. Mesmo que eu só lá vá dizer uma frase, é um prazer. Neste último filme, “Palavra e Utopia”, tenho uma pequena participação. Mas é sempre um prazer.
Quantos filmes já fizeste com ele?
- Cinco. É um grande cineasta o Manoel, um grande realizador.
O nosso maior.
- O nosso maior. O Manoel é maior que este país. E respeitamo-lo muito pouco.
Ele sente isso?
- Não! Está-se nas tintas. O Manoel, como artista, tem a liberdade de fazer o que quer. E isso é a coisa mais bonita que um artista pode desejar ou ter. É deixaram-no fazer o que ele quer.
O que é que sentiste quando te telefonaram pela primeira vez para entrares n’”Os Canibais”?
- Uh! Dei pulos de contente. Mas dou sempre pulos de contente, não é só com Oliveira. E penso: “Mas porquê eu?”
Mas isso é o quê? Insegurança?
- Não sei. Talvez um bocadinho de insegurança, sim. Fico sempre apavorado. Cheio de medo de não ser capaz. Mas é bom viver assim. A gente trabalha mais porque trabalhando muito consegue-se. Trabalho muito. Levanto-me cedo e trabalho, trabalho, trabalho. Aprendi isso com o João Perry. Temos que tentar ser sempre melhores do que da última vez.
Não sentes que perdes muitas coisas da vida?
- Não porque o meu trabalho dá-me tanto que compensa todas essas coisas que eu perco. E convém tornar a sublinhar uma coisa: eu nunca sacrificaria o meu trabalho por nada. Nem por filhos, nem por amor. O meu trabalho dá-me tudo que eu preciso. Isto pode parecer utópico, irrealista, mas digo-te com a maior das sinceridades: o meu trabalho dá-me tudo o que eu preciso.
Já te ouvi dizer que achas belíssima a ideia de morrer por amor. Um homem que acha linda esta ideia, também deve encontrar beleza na ideia de roubar bocadinhos ao trabalho por amor, que é bem mais simples que morrer “tout court”...
- Mas quem é que te disse que eu não amo o meu trabalho? Não vou dizer, como o Marco Paulo, que casei com a carreira, como deves calcular. Isso não digo. Mas posso morrer a trabalhar. E esse pode ser o meu acto de amor.
Duvido... Disseste numa entrevista que te ias reformar aos 45...
- Eu disse isso? De certeza que foi na altura do “Queridos Inimigos”, em que eu só dizia disparates. Reformar-me aos 45? Nem pensar nisso! Tenciono recomeçar aos 45. Inclusivamente há pessoas com quem eu quero trabalhar. Quero ir ter com elas e dizer-lhes na cara: “eu quero trabalhar contigo”. E acho que esse momento está a chegar porque a gente vai perdendo a vergonha com os anos.
Por falar em idade ...foi-te difícil entrar nos “entas”?
- Por acaso, quando fiz 40 anos, não foi fácil. Fiz a revisão da matéria dada, neste caso a revisão da matéria vivida, e comecei a tentar projectar a matéria que queria dar, neste caso aquilo que ainda queria viver. E digo-te que não foi nada fácil. Foi precisamente o ano em que fiz psicanálise.
Ajudou-te.
- Ajudou muito. Fiz psicanálise durante 6 meses e fui muito ajudado por essa mulher extraordinária chamada Margarida Pinheiro Marques que me ensinou a não dizer “odeio”, “tenho de”, ou “não gosto”. Em vez disso, passei a dizer “gostava de”, “não gosto muito de”. O ódio é uma palavra muito forte que nós usamos para tudo hoje em dia. Depois perde o peso.
Mas não há nada que realmente odeies? Com esse peso?
- Há. Evidente que há. Odeio a guerra. Odeio saber que há pessoas que passam fome. Custa-me viver num país com 10 milhões de habitantes e onde não se consegue resolver o problema da educação, da saúde, e da miséria. É pá, não se consegue? Num país com 10 milhões de habitantes? Porra!
Ainda acreditas que um dia alguma coisa vai mudar?
- As coisas têm que mudar. Acho que todos nós temos essa responsabilidade. Temos que nos revoltar, reivindicar. Vivemos numa sociedade em que só existem deveres. Os direitos estão a desaparecer. Mas nós temos direitos. Cada um de nós, individualmente, tem a obrigação de modificar e de exigir e de criar o país que quer.
Isso é utopia, sabes disso, não é?
- Não é nada utopia. Não é!
As pessoas nem sequer votam! Esse, por exemplo, é um direito que têm e são cada vez menos as que fazem uso dele!
- E eu pergunto-me: porque é que se fazem as eleições a um domingo e não a um dia de semana? Porque é que não é obrigatório votar? Porque isso é ditatorial? “Obrigatório”, não se pode dizer a palavra? Nós temos que votar. Se não votarmos não podemos reclamar. O povo... Ai desculpa, isto não se diz. Hoje não se diz povo. Já reparaste?
Não se diz povo?
- Não. Hoje já não há povo. Há “sociedade civil”. Está na moda chamar ao povo sociedade civil. Tem piada! Eu sou do tempo da construção civil e do tempo em que havia povo. Por que raio é que hoje não se diz povo? Eu digo povo. O povo não se pode alhear dos problemas reais.
Mas alheia-se.
- E alheia-se porquê? Porque os políticos não lhes interessam. Porque os discursos políticos não passam disso mesmo, de discursos. Porque os políticos, antes de terem poder, eram uns zés-ninguéns e, de repente, têm uns carros de marca, uns cartões VISA, umas amantes, e ainda ganham dinheiro ao fim do mês! E, na prática, não fazem nada. Como é que o povo não se há-de alhear?
Já reparaste bem no entusiasmo com que falas de política?
- Eu adoro política. Mas tinha que tirar um curso para me dedicar à política. Tinha que estudar mais.
E depois não servia de nada porque eras engolido juntamente com as tuas ideias.
- Pois era. Como foram muitos. Mas antes de ser engolido e devorado fazia tudo andar num virote. Tu já viste primeiro-ministro mais vaidoso que o nosso? Não é vaidoso da obra, nem do país. É dele mesmo. Sempre que o vejo em cerimónias oficiais está preocupado com a melena, em vez de estar preocupado com o país. Toda a minha vida votei. Sempre. Mas agora palavra de honra que não sei para onde me virar. Parecem umas tias zangadas umas com as outras. Só tenho pena que não sejamos um país de humoristas. Podíamos rir tanto quando chegássemos a casa!
Vês muita televisão?
- Corro o sério risco de me tornar um teledependente. Porque vejo coisas tão ridículas que chega a dar um prazer sádico, cruel.
Não há nada bom?
- Há coisas boas, que respeito e procuro não perder. Adoro debates políticos. Adoro tudo o que seja telejornais, informação, grandes reportagens...papo tudo, tudo, tudo. Sinais do Tempo, Hora da Verdade, gosto muito do Contra-Informação, e tenho um eleito neste momento que é o Zapping. Isso é que é um grande programa de humor feito com inteligência! Não perco um, tenho-os todos gravados. O Zapping é arte em televisão. Fica-me mal dizer isto? Estou armado em pseudo-intelectual porque é na RTP 2? Que se lixe! A verdade é que no serviço público, que nós pagamos, tudo o que é bom passa depois das 2 da manhã. Isso é outro assunto que também tem de ser resolvido rapidamente.
Qual é a solução para a RTP?
- Privatizem aquela merda! Eu não quero estar a pagar uma televisão que baixa ao nível para lutar pelas audiências. Isso não!
Falamos de televisão, temos necessariamente que abordar o tema da “casa mais famosa do país”. Já sei que depois do videoclipe do Otelo consideras o Big Brother uma brincadeira de crianças, mas...
- Olha, ainda bem que falas de crianças nesse contexto! Porque o Big Brother é um programa para adultos, não é para crianças. Os ex-residentes do Big Brother não devem ir ao Batatoon. Sabias que já lá estiveram?
Sabia.
- Eu que tinha ficado tão contente quando o Batatoon conseguiu atingir os níveis de audiência e de fama que conseguiu... Que bom! As crianças tornarem a gostar de palhaço! Porque há uma idade para cada coisa e a infância é para as crianças terem ilusões, sonharem, brincarem. Não é para ouvirem uma rapariguinha que troca os “vês” pelos “bês” dizer: “Chega-te para lá que eu quero-me peidar”.
Até um adulto fica atordoado, quanto mais uma criança!
- Exactamente. Agora, não há dúvida de que o Big Brother, como exercício de crueldade, é genial. Genial! Como análise do ser humano é genial. Tens um indivíduo que foi expulso da casa e que disse: “A casa precisa de um líder”. Os alemães disseram o mesmo quando elegeram o Hitler. Perguntas-me: “Estamos a criar monstrosinhos”? Eu acho que estamos é a deixar que monstrosinhos já nados e criados apareçam. Mas como eu não sou a favor da censura, não me importo que aquilo exista. Tem que existir é num horário específico. Depois das dez da noite. E, já agora, agradecia que pusessem “pis” quando houver palavrões e frases obscenas, e bolinha vermelha no canto superior direito.
Mas mais grave que isso são os programas supostamente para crianças que são de uma violência extraordinária...
- E as promoções de programas para adultos exibidos em horário em que as crianças podem ver. Ó pá, mas diz-me uma coisa: alguém está preocupado? Há neste país alguma associação de pais? Não sei se há. Alguém está preocupado? Aquela coisa dos pides, como é que aquilo se chama?
Dos pides?
- Sim, dos pides modernos... Ai, como é que se chama? Aquela associação de gente que escolhe os programas do mês da televisão e que só gostam de merda. Fazem-me lembrar os sensores de antigamente que iam ao teatro ver as peças no escuro para marcar os cortes.
O quê? As associações de telespectadores?
- Isso, isso! Mas quem é essa gente? Dá ideia que são uns velhos impotentes e umas velhas com incontinência, fechados numa sala durante 24 horas, sempre a ver televisão, os canais todos, e que só não se comem porque já não conseguem. Os programas que eles escolhem para melhores e para piores são, às vezes, de ir às lágrimas. Não sei quem são, não os conheço, mas gostava de ver a cara deles. Fazem-me sempre lembrar aquelas eminências pardas que eram os censores.
Viste o “Branca de Neve”?
- Não, mas tenho muita curiosidade e quero ir ver.
Que pena... Sem teres visto não podes comentar.
- Nem mais. Acho que não se pode falar sem ver e acho que não se deve atirar poeira para os olhos do povo. Ou seja, temos que olhar um bocadinho para a obra do João César Monteiro antes de criticar o “Branca de Neve”. Mas, se calhar, o “Branca de Neve” até uma obra de arte e um momento ímpar na carreira do César Monteiro.
O que choca as pessoas é o facto de um filme a negro ter sido pago com dinheiro do Estado... e a peso de ouro.
- Foi, mas a peça que está agora em cena com o Paulo Pires e Catarina Furtado também recebeu subsídios do Estado. Qual é a diferença? Não estou a perceber. Isso já não revolta as pessoas? Eles são duas figuras conhecidas, vão levar muita gente ao teatro. Para que é que precisavam de subsídio? Há coisas com as quais nós nos devíamos revoltar e não nos revoltamos. Porque é que as pessoas não se revoltam com o facto de o Teatro Nacional gastar 1 milhão de contos por ano e estar fechado praticamente o ano todo? A mim custa-me mais.
Tencionas ir ver a “Maçã no Escuro”, com a Catarina Furtado e Paulo Pires?
- Já te disse que quando quiser ver esse tipo de pessoas ligo a televisão, porra! Porque eles fazem deles. Porque é que eu hei-de ir ver uma peça de teatro se os vejo nos “fashions” e nas modas e nas revistas... Porquê?
Mas nessa peça entram pessoas que tu respeitas...
- Entram. Mas eu também respeito a Catarina e o Paulo Pires.
Respeitar enquanto actores. Estou a dizer enquanto actores.
- Entra a Maria Emília Correia, que eu respeito imenso, e a quem o estado deu um subsídio. Mas o diretor do Nacional também convidou o Paulo Pires para fazer uma peça de teatro como protagonista. Isso é mais grave. E convidou a Sofia Aparício. Aqui o erro não é das pessoas que aceitam. O erro é das pessoas que convidam. Temos é que os interrogar: não há actores? É a mediatização? É para ganhar dinheiro? É porque é moda?
Às vezes essas críticas soam a inveja. Eles roubam-vos o trabalho, a vós, actores?
- Não! Que disparate! Nunca os actores portugueses tiveram tanto trabalho! Neste momento há não sei quantas produções em curso... Felizmente! Inveja? Não me faças rir.
Não admites sequer que essas figuras mediáticas possam trazer mais gente ao teatro?
- Trazem por efeito. Ou seja, o facto de uma peça com uma figura mediática estar esgotada, não quer dizer que o teatro tenha ganho mais espectadores. Ganhou mais espectadores para aquela peça.
Mas não achas que as pessoas que foram ver aquela peça podem gostar tanto que voltem ao teatro para ver outras peças?
- Não. Porque essas pessoas não vão ver a peça. Não vão ver teatro. Vão ver a pessoa. Não, não concordo nada com essa teoria.
O que é que achaste do desempenho do ex-ministro Carrilho?
- Tenho o maior dos respeitos pelo Carrilho. Acho que é um homem extremamente inteligente. Não sei se é um bom político, sei que, por causa dele, falou-se muito de cultura. Muito, muito, muito. A cultura de repente ficou mediática. E isso faz falta.
E em relação a este ministro? Já tens noção?
- Eu conheço o José Sasportes há muito tempo. Desde o Centro de Arte Moderna, quando trabalhei lá. Acho que o José Sasportes vai continuar um pouco aquilo que o Carrilho deixou delineado. Neste momento não pode mudar muita coisa. Mas tenho medo que valorize áreas que eu sei que ele gosta mais: a dança, a música... sobretudo a dança. Claro que são áreas que devem ser valorizadas, mas tenho medo que deixe o cinema ou teatro, os audiovisuais, para mais tarde. Ou que lhes mexa pouco.
Já me disseste que não precisas de casar, nem de ter filhos para ser feliz. E eu acredito e não se fala mais nisso. Mas não temes a solidão?
- Nada. Quase nunca estou sozinho. Passo o dia rodeado de pessoas. Só estou sozinho quando estou a dormir.
E quando chegas a casa, quando metes a chave à porta? Há pouco, quando saíamos da tua casa, deixaste a luz e o rádio ligados. Isso não é já por si uma fuga à solidão, ao silêncio?
- Não. Gosto de chegar a casa e ter a sensação que está lá alguém. Mas não creio que isso tenha a ver com o medo da solidão. Chego a casa, janto, leio jornais, vejo televisão, dou de comer aos cães, brinco um bocado com eles, falo com eles, explico-lhes... Tento explicar-lhes que se ladrarem de noite acordam-me... e acho que eles percebem. Solidão? Não. Há tanta gente que está acompanhada e está profundamente sozinha. Já me senti só, claro, mas também já senti tudo: medo, solidão, desejo, vontade, pena... já senti isso tudo.
Sabes cozinhar ou é a Casimira que te salva de morreres à fome?
- Infelizmente, é a única coisa que eu tenho a apontar à minha mãe, ao meu pai, e à minha avó. A minha avó, então, ensinou-me a fazer tudo, até a passar a ferro. Menos a cozinhar. E eu acho que isso é mesmo uma coisa de geração, em que cozinhar era para as mulheres. Passar uma camisa, um homem podia ter de passar, numa urgência, e por isso era bom que aprendesse. Cozinhar era exclusivo das mulheres. Ter filhos e cozinhar. E a minha avó não me ensinou.
Não cozinhas nada?
- Cozinho! Como imenso de bacalhau cozido. Sei cozer peixe, sei cozer bacalhau, sei fazer bifes, sei fazer sopa... Isso sei e muito bem. Como a minha sopa não há nenhuma!
O que é que leva a tua sopa?
- É sempre à base de cenouras, abóbora, cebolas, alguns alhos, azeite de baixo teor desse acidez, uma batata só, para iludir a sopa...
Sabes como é que iludes muito bem a sopa sem batata? Com couve-flor.
- Ah, pois é. Já me tinham dito e tenho de experimentar. Depois misturo grão, ervilhas, feijão... tudo em lata para ser prático. Eu sou prático, prático.
Imagina que tens um dia livre. O que é o dia livre ideal para ti?
- Num dia livre não há relógios, nem despertadores, nem pessoas a baterem à porta, sob pena de serem corridas quase à pedrada. Música calma, um bom pequeno-almoço...
O que é um bom pequeno-almoço?
- É um sumo de laranja natural, torradas com manteiga ou com geleia... Melão, papaia, iogurtes, muitos cafés... Depois vou a correr comprar os jornais, acendo a lareira ou não - conforme os dias - e fico em casa a ler de pijama. Aliás, vou comprar os jornais de pijama. São as vantagens de morar na província.
Não vais nada de pijama.
- Vou, vou! Também não se nota assim tanto, não é um pijama às riscas! São umas calças de fato de treino e uma t-shirt. Mas mesmo que se notasse, não me ralava nada se quer saber. Um dia livre ideal é assim. Gosto muitíssimo de ler. E temos escritores tão bons...
Quem são os teus eleitos?
- Tantos! José Saramago, como é óbvio e evidente, desde que li o Memorial do Convento. Sabes o que foi o único livro português que li 3 vezes? Era o grande filme que eu gostava de fazer. Era o nosso grande filme! José Cardoso Pires, António Lobo Antunes, Eugénio de Andrade, o Al Berto... Tantos, tantos, tantos! Este país é assim uma macieira cheia de maçãs podres, que no meio tem uns diamantes.
Que bela definição...
- E há muitos diamantes: Paula Rego, Maria João Pires, Siza Vieira... Como eu tenho orgulho em falar a língua e ter nascido no mesmo país que eles! E há muitos mais: Maria João, Mário Laginha, Graça Morais... Sabes quais são os meus sonhos materiais?
Não. Conta.
- Uma casa feita, desenhada não pelo Siza porque dificilmente teria dinheiro para lhe pagar, mas pelo filho ou por um discípulo. E ter um quadro da Paula Rego lá dentro. Só tenho estes dois sonhos materiais.
Só? São dois diamantes...
- Pois são. Dois diamantes de uma macieira cheia de maçãs podres.