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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Conta-me #11

E então ele vociferou:

- Pois eu estou-me positivamente cagando para esta família. 

E saiu.

Não foi só a palavra que nos deixou estarrecidos, os garfos no ar, a caminho das bocas, congelados no tempo como se o tempo tivesse, por obra daquela frase, realizado a proeza de congelar. Não foi apenas a palavra, jamais proferida por aquela boca, de onde nunca saíra uma incorrecção. Foi o tom definitivo, o advérbio contundente atrás do verbo cagar, o modo teatral com que abandonou a sala em seguida, a repulsa com que ainda mirou as loiças Companhia das Índias dispostas na cristaleira que havia sido da bisavó.

De então para cá, o pai nunca mais foi o mesmo. Sempre foi um senhor. Quando me ia buscar ao colégio, recostado no banco de trás do carro conduzido pelo fiel Augusto, os meus colegas e os professores paravam para nos ver passar. Não, não eram coisas da minha cabeça. Era de facto assim, quase como se também então o tempo petrificasse com a sua presença (apesar de ser por outros motivos que não os de agora). O pai usava sempre um chapéu e um sobretudo. Será tolice minha e isso sim, produto da minha fantasia, mas seria capaz de garantir que até no verão se apresentava de sobretudo. Sim, claro que é tolice. Seria uma atitude despropositada e o pai nunca era, nunca foi, descabido em qualquer tipo de conduta, fosse à mesa, fosse no modo de vestir, de caminhar, de cumprimentar. O pai era um senhor. E a sua rectidão dava-me um conforto que se assemelhava a uma sombra, a um aconchego, um ninho. Não falava muito, o pai. Mas sentir aquela mão na minha mão bastava-me. Sentia-me o rapaz mais afortunado do mundo. Ninguém em parte alguma podia ser mais feliz do que eu quando ia assim, de mão dada com o pai.

Ninguém nunca soube o que provocou a mudança. A mãe irritava-o, claro, com as suas manias da limpeza e da ordem. Mas isso era compreensível. Na verdade, a mãe conseguia dar conta dos nervos de todos, empregadas incluídas, que nunca limpavam suficientemente bem, que nunca sabiam o sítio milimetricamente correcto das coisas, que nunca mereciam - na sua opinião - o dinheiro que lhes pagávamos. Talvez tantos anos de convivência com a personalidade histriónica daquela mulher desequilibrada pode levar o juízo a qualquer um. Os filhos seguiram com as suas vidas, saíram daquela casa, mas ele ficou. Refém. Agora que penso no assunto, recordo que uns dias antes da frase que mudou a nossa vida, a mãe tinha-me ligado num pranto:

- O seu pai... - começou, soluçando. - O seu pai pegou em tudo o que estava nas prateleiras e atirou ao chão. Está louco. Saiu daqui a dizer que ia escolher o bordel mais imundo da cidade e que só voltava quando se sentisse suficientemente sujo e... e... e vivo.

Compreendi a urgência da situação. Larguei tudo e fui até lá. Com efeito, tive dificuldade em reconhecer a sala de estar da casa em que cresci. Onde antes havia ordem (mais que ordem, praticamente um cenário), agora reinava o caos. Nem um único livro ou moldura no lugar. Havia cacos por toda a parte e a mãe aparentava uma tonalidade entre o branco e o roxo, talvez uma matiz que nunca antes tinha vislumbrado.

- Já viu, António? Já viu isto? O seu pai... o seu pai.

Horas mais tarde - já as minhas irmãs estavam em casa, tentando consolar a mãe - chegou ele. Desgrenhado, com marcas de baton nos colarinhos (palavra de honra, parece uma hiperbolização, um daqueles clichés exacerbados e cinematográficos que usamos quando queremos que as pessoas entendam exactamente aquilo de que estamos a falar, mas não, o pai tinha mesmo marcas de baton encarnado nos colarinhos, tal como vemos nos filmes) e um cheiro a perfume reles (juro). Olhou para mim, riu alarvemente e declarou:

- António, há um sítio que tem de conhecer. Se quer sentir-se vivo. Agora, se me dão licença, vou dormir. Dói-me num sítio que não posso revelar. - e saiu com uma gargalhada gutural.

Dois dias depois, mais calmo, consegui que conversássemos um pouco no escritório. Achei que era assunto para dois homens adultos, ainda que fôssemos pai e filho:

- Pai, quer explicar-me o que aconteceu aqui há um par de dias?

- António, a sua mãe desespera-me. Enlouquece-me. Por falar nisso, devia divorciar-se da Teresa, essa puta neurótica que claramente lhe inferniza a vida e que é a cópia perfeita da sua mãe. Eu não o posso fazer. Que seria. Agora, com esta idade, a pedir o divórcio, a sua mãe ainda fazia alguma cena, era capaz de ser pior a emenda que o soneto. Mas a verdade, filho [ele nunca me tinha tratado por "filho"], é que não suporto mais vê-la levantar-se 15 vezes por noite, enquanto tento ler um livro, para ajeitar o saleiro ou o castiçal mais para a esquerda ou mais para a direita. Falamos de milímetros, António. Creio até que ela os move um pouco para depois tornar a movê-los e acabar a deixá-los exactamente na mesma posição em que estavam no início. É patético, filho [a segunda vez, em segundos]. É patético e triste e eu estou exaurido desta vida patética e triste que levamos.

E depois desta explicação, proferida com calma e lógica (o que me fez recuperar a esperança de que talvez tudo se remediasse), o pai regressou à loucura. No dia seguinte acordou, despiu-se para tomar banho mas, em vez de seguir para o duche, dirigiu-se para a cozinha. As empregadas não queriam acreditar. O senhor engenheiro estava em pelota junto ao lava-loiça. E, como se não bastasse, ainda se roçou pela mais nova, revelando de imediato uma espantosa erecção.

- Qualquer dia ensino-te umas coisas.

A rapariga ruboresceu e foi incapaz de balbuciar uma palavra. A imagem daquele membro hirto encostado a si aterrorizava-a. A Arminda, que está connosco desde sempre, segurou o peito porque cuidou que o coração lhe fosse perfurar a caixa torácica e a pele e talvez pudesse ainda ampará-lo com as mãos. Ninguém foi capaz de contar nada à mãe. Fui eu quem ouviu, aturdido, o relato das duas mulheres. E tem sido esta a minha vida. Ouvir queixas sobre o pai. O senhor engenheiro. O distinto senhor de sobretudo.

Entre as várias que nos tem feito nos últimos meses - sim, que não tarda e vai fazer um ano com que nos brindou com aquela frase com que decidiu alterar a nossa existência - entre as várias pérolas, dizia, destaca-se a ideia peregrina de urinar para uma garrafa de plástico de litro e meio, com que anda todo o dia debaixo do braço. 

- Temos de poupar, António. Temos de começar pelo básico, pela água. Se puxamos o autoclismo de cada vez que mijamos [outro vocábulo impossível no léxico do pai que conheci], e eu mijo muito, António, a conta vai por aí fora. Assim, devemos todos andar com uma garrafa e só despejamos quando estiver cheia. Hã? O que lhe parece? De génio!

Isso e o dia em que me cruzei com uma puta no corredor são os episódios que me ocorrem assim de repente, agora que falamos nisso. Sim, uma puta. A mãe transida na salinha da leitura, a tremer, e a puta a sair do quarto deles, ainda a ajeitar a roupa, e atirando um beijinho provocador.

- Isto é demais para mim, António! O seu pai foi longe demais! Ele ou eu, alguém vai ter de sair desta casa!

Logo de seguida, o pai apareceu na salinha, e sou capaz de jurar que apareceu de braguilha aberta com o propósito único de a chocar.

- Então, filha? - perguntou com um suspiro quando desabou na poltrona - O que é o almoço? Estou cá com um apetite! De touro!

E por isso, doutor, não sei. Não sei que lhe diga. A mãe emagrece a olhos vistos, está tão magra que tenho para mim que qualquer dia desaparece entre uma puta e uma garrafa de litro e meio de mijo. As minhas irmãs deixaram de frequentar a casa, desde que o pai as recebeu de tanga de tigre [não me pergunte onde arranjou aquilo] e as quis convencer a urinarem para dentro de garrafas de plástico. A empregada mais nova fugiu e nunca mais ninguém soube dela desde que o pai lhe apareceu todo nu na cama, dizendo ter chegado o dia em que o professor ia ensinar umas coisas à aprendiz. E até a vizinhança cortou relações com a família desde que se descobriu que era o pai quem andava a pintar frases nos carros: "Forniquem já antes que a vida vos fornique". Como imagina, não escreveu "fornique", eu é que não me atrevo a ir tão longe. Mas o doutor percebe. De modo que não sei. Sinto-me perdido. E o pior é que às vezes acho-lhe graça. Às vezes acho que o compreendo, sabe? Toda a vida foi o senhor engenheiro, o homem imponente de sobretudo. Creio que se terá fartado. Cansou-se. Deixou cair a máscara. Abriu o sobretudo, se é que me faço entender. E eu há alturas em que eu - salvo as devidas distâncias que separam um doido de um homem são - tenho vontade de fazer o mesmo.

Captura de ecrã 2018-11-12, às 15.44.03.png

(eu sei que isto não é um sobretudo, mas uma gabardina, ok? Mas foi o melhor que encontrei 😂)

 

*Conta-me é uma rubrica do blogue Cocó na Fralda com contos escritos pela autora

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