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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Mudar de Vida #9: Rui Gomes

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Foi a gestão que os pais faziam do pouco dinheiro que tinham que o levou a seguir a área financeira. Aquela espécie de milagre da multiplicação sempre o fascinou. Queria aprender a fazer o mesmo. Como não era um aluno brilhante, não entrou na universidade pública. E, por respeito aos pais (que, apesar de tudo, não produziam notas no quintal), Rui Gomes, nascido em Espinho mas criado em Valadares, começou a trabalhar de dia para pagar os estudos noturnos na faculdade privada. Foi vendedor numa imobiliária, fez biscates em restaurantes, trabalhou num escritório de seguros, e depois vieram os gabinetes de contabilidade.

Desde miúdo sempre praticou desporto. Participava nos Jogos Juvenis mas, quando deixou de ter idade para concorrer, inscreveu-se nos Desportos Tradicionais. "Uma das modalidades era Andas. Daquelas Andas altas, que se seguram com as mãos. E eu andava mesmo muito bem naquilo. Comecei a entrar em corridas, e representar a freguesia de Valadares e rapidamente comecei a ficar em primeiro."

Um dia, quando ainda estagiava nos seguros (já lá vão 17 anos), enviou o currículo para uma empresa de animação em Lisboa a dizer que sabia andar de Andas. Nem queria acreditar quando recebeu a resposta: "Pagavam-me 1200 euros por uma semana a trabalhar 4 horas por dia. Ora, eu recebia 600 euros por mês. Perguntaram-me se fazia Andas de animação, eu disse que sim, mas era mentira. Só fazia de competição. Lá experimentei algumas coisas, como meter fita-cola nas pernas... digamos que tive algumas experiências dolorosas para aprender a fazer aquilo. Mas fiz. E, no final, pensei: "Isto é muito melhor do que estar num gabinete de seguros... Depois desse trabalho surgiram muitos outros."

Mas ainda era apenas um hobbie. Nem sequer lhe passava pela cabeça viver disso. Afinal, quem é que vive de andar em cima de Andas? Começou a trabalhar no gabinete de contabilidade e gostava. Era um grupo de gente jovem, muito divertido. "Eu sei que ninguém associa a palavra diversão à profissão de contabilista mas aquele grupo era mesmo giro. Foi uma experiência profissional muito boa. Nem havia a típica relação patrão/colaboradores. Sentíamos que trabalhávamos todos para o mesmo fim. Aprendi muito."

Foi uma fase louca: durante o dia a trabalhar em Contabilidade, à noite na faculdade a estudar Gestão, ao fim-de-semana a fazer animação. "Era uma vida hiper-lotada." Pelo meio, foi fazendo cursos. De teatro, de palhaço. Queria saber mais sobre aquele hobbie que o encantava. Queria ser melhor.

Em 2004, decidiu abandonar o curso. Faltavam-lhe duas cadeiras. Os pais, que não tinham estudado e viam no filho o orgulho da família, sentiram um baque: "Foi frustrante para eles, eu sei. O meu pai, mais conservador, disse que era uma ideia absurda. 'Estás mesmo quase a acabar o curso, não faças isso!' A minha mãe sentia que eu estava a deitar pela janela uma oportunidade de 'ser alguém', de ter um trabalho sério, de ter um diploma. Quando vesti pela primeira vez o traje académico vi no olhar dela aquela satisfação, aquela felicidade. E agora eu ia abandonar isso tudo para ser actor? Para ser palhaço?"

Nessa altura, Rui já tinha casado (casou aos 25 anos). Ana, a mulher, apoiou-o. Acreditou que ele conseguiria vencer, mesmo numa área tão volátil como a da representação/animação. Compreendeu que ele, ao contrário de si, não era propriamente bicho de gaiola. "Ela é licenciada em Recursos Humanos e gosta do rigor dos horários, da concentração durante esse período, de sair e desligar para, no dia seguinte, voltar. Eu estava a sufocar um bocadinho. A Contabilidade ainda por cima tem a desvantagem de ser um trabalho sempre inacabado. É por isso que eu gosto de projectos pequenos. Damos tudo e depois fecha-se essa porta, para abrir uma nova de seguida. Portas sempre diferentes mas que dão origem a coisas concretas com princípio, meio e fim. Estava um bocado farto de ser contabilista. Na altura sentia que financeiramente a animação tinha um peso grande na minha vida. Sabia que deixar o gabinete ia fazer com que não ganhasse tão bem mas tinha 26 anos. Se não desse logo voltava atrás. Não era um salto mortal sem rede. Não existia muito esse peso. E então, em Agosto de 2007, três anos depois de ter deixado o curso, deixei também o gabinete."

Terminou o curso semi-profissional de Teatro (4 horas diárias durante 6 meses), que tinha começado quando ainda trabalhava no gabinete. E, no final, um pequeno grupo em que ele se incluía decidiu criar uma companhia de teatro, a Estaca Zero. E, um mês depois de se ter despedido, teve a sorte de ser logo contratado para um projecto relativamente grande em Estremoz: "Ciência na Rua", promovido pela Ciência Viva. 

Entretanto, abriram as candidaturas para a Operação Nariz Vermelho. Rui já fazia trabalhos como palhaço em eventos infantis e candidatou-se. Passaram meses sem dizerem nada até que, em Novembro, chamaram-no para ir à entrevista. E foi então que achou que não queria ir por ali. "Pensei que não queria trabalhar em hospitais, não queria esse peso para mim. Achei que ia chegar a casa infeliz. Não queria." O seu amigo Jorge Rosado, também palhaço, ligou-lhe no dia da entrevista, a convencê-lo a ir. "Estavam lá dos maiores actores do Porto. A verdade é que entrar para a ONV dava a qualquer actor um suporte financeiro estável, que é raro nesta profissão. Eu olhava para aquela gente consagrada e só pensava: 'não vou ser eu, um palhacinho das festas, que vou ser admitido.' E, na verdade, sentia que aquela não era bem a minha cena. Estava feliz, estava a ganhar relativamente bem... mas lá fui. A entrevista foi com a Beatriz Quintela (a mentora, então presidente do projecto e Dra da Graça) e com o Mark Mekelburg (Dr. P.P.P. Pipoca). Ela perguntou-me o que tinha feito no último ano, eu expliquei que tinha deixado de ser contabilista para me dedicar a ser actor e palhaço. A Bia quis saber se eu ganhava mal como contabilista, e eu respondi que não, pelo contrário. Só que não era muito feliz."

Contra todas as suas expectativas, passou para a fase seguinte. Deu por si a pensar que estava a vestir um fato maior que ele. Que havia tanta gente tão melhor que ele que não tinha sido seleccionada. Havia quase um sentimento de culpa, de embaraço. Quando chegou a altura de fazer um workshop em Lisboa, veio de novo sem esperanças de ficar. O primeiro dia era para verificar a disponibilidade artística de cada um e, no último dia, era suposto que cada concorrente fizesse uma performance de 3 ou 4 minutos para a equipa residente da ONV escolher os melhores.

A esta distância, Rui consegue perceber que toda a sua renitência e o convencer-se de que não era aquilo que desejava realmente não passava de medo. "Agora consigo perceber isso. Eu sabia que os outros eram muito melhores que eu, mais experientes, mais actores. E tinha medo. Medo de falhar, medo de me sentir humilhado. Defendia-me com o 'não quero' mas na verdade eu queria. E muito."

O workshop correu muito bem e alguns membros da equipa foram ter com ele para lhe dizer que estavam a gostar muito da sua prestação. "No domingo tinha de fazer uma performance mas, com aquela ideia fixa de que não ia ficar, não preparei nada.  Não sentia o peso da culpa por não me ter preparado. Só o senti no domingo de manhã, que foi o dia mais frustrante da minha vida. Ver os meus colegas todos com coisas muito boas, muito pensadas, estruturadas, artisticamente muito bem conseguidas e eu... nada. Chegou a minha vez e o que tinha era uma coreografia de um palhaço peruano que conhecia. Na altura pouca gente conhecia aquilo mas sempre que fazia em eventos era um sucesso. O pior é que aquilo funcionava em ambiente de festa mas num ambiente de pessoas que desenvolvem conteúdos artísticos de valor aquilo era muito mau. Estava a fazer a performance e a sentir claramente 'isto não é adequado para este momento'. Agora, estar a fazer isto diante da Beatriz Quintela, que já me tinha dito que eu era fixe, foi horrível. Percebi que ia defraudar as expectativas e pensei: 'sou mesmo o animador de festinhas infantis, o palhacinho...' Senti o estigma. E senti que tinha lixado a minha oportunidade."

Enquanto esperavam pela avaliação dos membros do júri, iam ouvindo os seus comentários. E não eram coisas boas de ouvir. A certa altura, um alemão da equipa (Harry Rothermel ou Dr. Batota) levantou-se, chegou perto do Rui e atirou, bem à bruta: "O que tu fizeste ali foi uma merda e por mim nunca entrarás neste projecto." A sentença doeu-lhe mas sabia que o alemão estava certo. Percebeu que Beatriz Quintela estava chateada mas era a única a lutar por ele. O seu nome foi o último a ser escolhido e foi a Bia quem apostou nele: "Será a minha escolha pessoal." Na sala houve um sentimento de injustiça muito grande. Não só dos actores que não foram escolhidos como dos doutores palhaços residentes, que acharam que estava a entrar um tipo com pouco valor. "Eu também senti que estava a tirar o lugar a quem merecia mais do que eu."

A fase seguinte foi já em ambiente hospitalar. A ideia era fazer dois ou três serviços, em dupla, acompanhados pelos doutores palhaços séniores. A ideia era improvisar e ver como corria. Rui fez dupla com Julieta Rodrigues (hoje Dra Foguete) e não podia ter corrido melhor. "O primeiro serviço onde fomos foi aos Queimados. A primeira criança que vi não tinha pele na cara, só carne viva e um líquido a escorrer. Foi forte mas não me deixei abalar. A Julieta, que já fazia teatro de rua, estava no terreno dela e eu, habituado às festas infantis, também. Quando terminámos estava apaixonado. Eu quero mesmo isto. Vou poder trabalhar para estes miúdos e todos os dias vou poder aprender mais, com gente com imenso valor, e a ter formação permanente. É isto que eu quero!"

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Dois ou três dias depois, a resposta. "Nunca me hei-de esquecer: estava na garagem com o meu pai quando ligou o Mark. Foi, sem dúvida, um dos momentos mais felizes da minha vida." Rui comove-se ao relembrar mas diz que não chorou nesse instante. "Andava pela garagem aos saltos a gritar: Entrei! Entrei! Entrei!" Logo a seguir, ligou para o seu amigo Jorge Rosado, para saber se ele também já tinha recebido o telefonema do Mark. Ainda não tinha recebido. Nunca chegou a receber. E foi assim que a felicidade ganhou uma nuvem que a ensombrou: "Fiquei realmente triste por ele. Ele queria muito mais do que eu, pelo menos quando todo o processo de selecção começou. Foi por causa dele que eu fui à entrevista, e acho que nunca lhe disse isto mas devo-lhe esta fatia grossa de coisas boas que chegaram à minha vida a partir daí."

Ser um doutor palhaço mudou tudo. "Mais do que uma experiência profissional, tem sido uma experiência de vida. As pessoas que tenho conhecido, a queda de preconceitos que eu tinha por um questão de educação, e até a forma como passei a ver a vida. Relativizar os problemas que, na maior parte das vezes, nem chegam a ser problemas. Viver intensamente. Aprender sempre. Criar! Há definitivamente um Rui antes e um Rui depois da entrada na Operação Nariz Vermelho." 

A escolha do nome - Dr. Boavida - foi imediata. "Isto sim, é Boa Vida. É acordar todos os dias feliz porque vou fazer o que quero. É ter, além do mais, formação artística regular. É não ter horários rígidos. Além de continuar a pertencer àquela companhia de teatro criada depois do curso (Estaca Zero), criei a minha própria companhia: Centelha Criativa. Umas vezes tenho muito trabalho, outras menos. Umas vezes ganho muito, outras não. Mas não trocaria a minha liberdade por nenhuma regularidade financeira. Ainda assim, há três anos concluí as duas cadeiras que me faltavam do curso de Gestão. Senti que tinha de fechar esse ciclo da minha vida. Nesta segunda vida que tenho, o amor pelo que faço é tão grande que eu faria tudo o que faço de graça. Sem me pagarem. Felizmente pagam-me, porque preciso de dinheiro para viver. Mas não seria contabilista sem que me pagassem. Percebes a diferença?"

Rui Gomes é um homem grato. Aos pais, à passagem pela Contabilidade, à descoberta das Andas, ao amigo Jorge Rosado, à Beatriz Quintela que acreditou nele, ao alemão bruto que o pôs no lugar quando merecia (e de quem é hoje amigo), a todos aqueles com quem aprende, todos os dias. É sobretudo grato à vida, que lhe permitiu fazer esta inversão de marcha que fez dele a pessoa que hoje é. Uma pessoa que vale a pena conhecer, acrescento eu.

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