Os Papa-Léguas #8: Iron Brothers
Faltam 7 dias para o grande dia. No próximo domingo, 29 de Setembro, Miguel e Pedro vão completar o seu primeiro Half IronMan juntos. Para quem não sabe, o Half IronMan é uma prova de triatlo que consiste em fazer 1,9km a nadar, 90km de bicicleta e 21km a correr, ou seja, metade das distâncias do Full IronMan (3,8+180+43km). Para quem também não sabe, Pedro tem paralisia cerebral e é Miguel, o seu irmão mais velho, quem vai transportá-lo nas três modalidades. Eles são especiais. Eles são determinados. Eles são super-atletas. Eles são os Iron Brothers.
Tudo começou com a água. Os pais do Miguel queriam que ele soubesse nadar e, aos seis anos, meteram-no no Algés e Dafundo. Aos oito, e apesar de andar ali contrariado, fez uma prova interna de natação que ganhou. E foi então que o convidaram para a competição. Ainda sem pinga de paixão, Miguel aceitou o convite. Sempre foi competitivo e aquele era o incentivo que faltava. Pouco depois, estava mais do que convencido. Tão convencido que os pais passaram da ameaça "se não fizeres isto obrigamos-te a continuar na natação" para a oposta: "se não fizeres isto tiramos-te da natação" (os pais que nunca usaram o velho truque da ameaça que atirem a primeira pedra).
Miguel especializou-se em Mariposa, nos 100 e 200 metros. Chegou a ficar em segundo lugar nos Nacionais em Mariposa. Treinava 5 horas por dia. Mas, aos 14 anos, uma lesão num ombro, que teimava em não passar nem com fisioterapia, e que o fez passar um ano a treinar um mês e parar fê-lo dizer "basta". Só há pouco tempo soube o nome do problema que o afastou das pistas: conflito subacromial. Nos tempos que se seguiram, dedicou-se a experimentar um sem número de desportos, mas sem nunca lhes dar a importância que tinha dado à primeira modalidade. "Joguei ténis, fiz motocross, kung fu, rugby... dos 14 aos 23 ou 24 anos andei a saltitar mas nunca fiquei parado. A verdade é que o desporto sempre fez parte da minha vida. Posso mesmo dizer que faz parte do meu ADN: o meu pai foi nadador e campeão nacional de ténis de mesa, o meu avô foi nadador... e para mim o desporto é mesmo essencial."
Entretanto, e continuando com a cronologia exclusivamente desportiva, Miguel meteu-se no crossfit de competição e, três anos depois, teve uma compressão na coluna que o obrigou a ficar 6 meses sem levantar pesos. "Pensei: vou aproveitar para trabalhar a minha debilidade no crossfit, que é a resistência. Faltava um mês para o triatlo de Oeiras quando a minha amiga Rita Machado me desafiou a participar. Nunca tinha feito um triatlo. Mas fui". Foi, fez um tempo dos diabos e, claro, quis mais. Uns dias depois estava a inscrever-se no Half IronMan de Cascais. "Comecei a treinar com o Pedro Almeida (do Treino em Casa), tinha a expectativa de terminar a prova em 6h30 e, afinal, terminei em 5h39."
Enquanto se encontrava a treinar para a prova, que era em Setembro de 2018 e, de férias para o Algarve com a mulher, o filho, o irmão Pedro e a irmã Catarina e o marido, Miguel recebeu um vídeo que a amiga Rita Machado enviou, em que dois irmãos ganham o slot para o IronMan do Hawai (os irmãos Pease). Mal acabou de ver o vídeo, Pedro exclamou um: "Também queria!". Miguel, que nem sabia se conseguia terminar um Half IronMan sozinho (quanto mais acompanhado), respondeu: "És maluco!" Depois de terminar o seu primeiro Half a resposta mudou para um promissor "Se calhar vamos!" (que, na verdade e para quem o conhece, era já um categórico "É claro que vamos!")
Uns dias depois estavam os dois juntos, pela primeira vez nestas andanças, no super sprint "My LX Triathlon Experience", em Algés. "Fizemos juntos a natação e a corrida. A bicicleta fiz sozinho. Foi uma primeira experiência, para ver como corria. Correu bem e o Pedro continuava motivadíssimo."
Foi então que criaram o nome, o logotipo, a página, o conceito. Seriam os Iron Brothers.
Quando começou a treinar para a prova que agora se aproxima, Miguel percebeu que tinha de melhorar a natação. Para isso, começou a treinar com o CNATRIL (Clube de Natação e Triatlo de Lisboa). "Além da natação, comecei a dar voltas de bicicleta de 110, 140km com eles. Custou-me deixar de treinar com o Pedro, que além do mais é meu amigo, mas sentia que rendia mais a treinar com uma equipa que, toda ela, estava envolvida no mesmo objectivo. Comecei a treinar com os melhores no triatlo em Portugal, o que dá uma motivação brutal." Os treinos foram aumentando de intensidade até às 25 horas por semana. "O meu treinador, Hugo Ribeiro, foi importantíssimo nisto tudo. Ele é daquelas pessoas que acredita em nós, muito mais do que nós próprios. Tem sempre uma palavra de incentivo e de tranquilidade. Foi graças a ele e à equipa que consegui fazer tudo isto."
Depois daquele primeiro Half IronMan de Cascais em 2018, Miguel fez o Setúbal Triathlon em 2019 ("Foi muito duro. Foi tão duro que já me inscrevi para ir outra vez para o ano"), e o Triatlo Longo de Caminha, em Junho deste ano. Com o irmão, fez duas meias-maratonas, 1 triatlo super sprint, 1 sprint e uma maratona (Maratona de Aveiro). Pergunto-lhe se costuma comover-se. "Não. Excepto na maratona de Aveiro. Tinha prometido ao Pedro que ele ia acabar a prova a pé. E assim foi. Tirei-o da cadeira e cortámos a meta juntos, ele apoiado a mim. Aí chorei. (silêncio) Aí chorei mesmo."
Mas, afinal, quem é o Miguel e quem é o Pedro e que aventura é esta?
Miguel tem, como se disse logo no início deste texto, 33 anos. Lisboeta de gema, tornou-se advogado, como o pai. É casado há 4 anos com a Maria, têm um filho com 3 anos, o Manuel. Cresceu com dois irmãos mais novos: Pedro e Catarina. A paralisia cerebral do irmão, de 31 anos, nunca foi tema para nada. É só uma condição. "O meu irmão percebe tudo o que o rodeia. Não anda, mal mexe os braços, fala com dificuldade (apesar de eu entender tudo o que diz), mas tem um enorme sentido de humor, e é muito inteligente. É tão inteligente que usa aquilo que tem para ter aquilo que quer." A condição de Pedro, porém, pode bem ter sido a salvação da sua família nuclear, afirma Miguel: "Acho que se não fosse o meu irmão Pedro nós éramos todos uns idiotas. Às vezes as pessoas com algum conforto financeiro tornam-se auto-centradas, arrogantes, completamente alheadas daquilo que realmente interessa. Estou em crer que o meu irmão nos trouxe sabedoria. E o coração no lugar certo."
Pedro passa os dias num centro da APCL (Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa). A associação depara-se (como tantas) com dificuldades financeiras e tem umas carrinhas velhas, sem ar condicionado, que transportam os utentes. A luta do Pedro tem sido, ao longo dos anos, a de pedir dinheiro ao pai e aos amigos do pai para ajudar a APCL a renovar a frota ou para outras melhorias que podiam ser feitas. Quando Miguel fez o primeiro Half IronMan (ainda longe de imaginar que havia de se meter a fazer uma prova com o irmão), pediu 112€ (o equivalente à soma dos quilómetros feitos entre a natação, o ciclismo e a corrida) a várias empresas para apoiar a causa de Pedro. Em troca prometia levar o logótipo das empresas no seu fato. Correu bem. "Tão bem que no dia da prova eu parecia um palhaço, todo cravejado de logótipos. Conseguimos angariar 4 mil euros."
A missão dos Iron Brothers tem sido, além de treinar, a de contar a sua história. Por um lado, querem mostrar que a paralisia cerebral não tem de ser um entrave a coisa alguma, por outro lado querem ter um papel de inclusão das pessoas com deficiência no desporto, despertando consciências. Mas querem mais. Querem angariar fundos para ajudar a APCL, querem criar uma associação que, em breve, possa ter 20 canoas, 20 cadeiras de correr e 20 bicicletas para que 20 pessoas com deficiência possam participar em futuras provas. Querem criar um podcast que conte a história do triatlo em Portugal. Querem continuar a participar em eventos desportivos e a levar o nome Iron Brothers mais longe, evoluindo para novos projectos. Para o ano, já há várias ideias, nomeadamente fazer o IronMan (o completo) em Barcelona (mas ainda estão à espera de autorização). E, claro, o ultimate goal seria participar na prova-rainha das rainhas: o IronMan do Hawai (o berço da marca IronMan, desde 1978). Há tanto para fazer, tanto para conquistar: "Acho que esta foi a oportunidade de o Pedro passar a sua mensagem. De participar em algo que é muito mais do que pedir dinheiro ao pai ou aos amigos do pai para ajudar a associação onde passa os dias. De se envolver. De perceber que a paralisia cerebral não o define e que pode mais do que imagina. Porque isto para mim é duro mas para ele também. É verdade que eu é que faço a força, eu é que nado, pedalo, corro e ele parece que vai ali na boa. Mas não. Ele vai em esforço. São muitas horas na mesma posição, ao sol, ou ao frio, ou à chuva, ou ao vento."
Para a prova que está mesmo, mesmo à porta, os Iron Brothers quiseram construir uma bicicleta de raiz, inspirada na bicicleta dos irmãos Pease, já que foram eles que espoletaram tudo isto. "Nós não podíamos ter uma bicicleta que tivesse a cadeira atrás porque o Pedro não consegue comer nem beber sozinho. A bicicleta tinha de permitir que eu estivesse à distância de um braço dele. Só que mandar vir uma custava perto de 20 mil euros. Era impossível. Então lançámos um pedido de ajuda e fomos contactados por duas pessoas que disseram que faziam. Escolhemos o Rodrigo Coelho que, além de desenhar, trabalhava na fábrica que faz as bicicletas da Decathlon. Depois foi preciso procurar apoios. E tivemos muitos, felizmente. O Hospital da Luz ofereceu 4 mil euros para a bicicleta, porque era esse o valor que estimávamos que custasse. Afinal custou bem mais..."
Miguel é perseverante. Insistente. Persistente. Há quem lhe chame teimoso. O certo é que não desiste. Perseguiu todas as empresas de que se lembrou ao longo de meses. Tocou a todas as portas. Várias vezes. "Todos os dias dedicava uma hora do meu dia para isso." Ai de quem lhe diga que não consegue isto ou aquilo. É certo e sabido que vai conseguir. Nos últimos três meses, a sua vida tem sido uma loucura, para conseguir ter a bicicleta pronta a tempo. Infelizmente os desenhos que eram para ter ficado prontos em Abril só lhe chegaram em Agosto e só então se começou a sua construção. Só há duas semanas é que Miguel conseguiu ir fazer o treino com a bicicleta nova e terá sido o dia mais duro da sua vida: "Não sou nada de me queixar mas foi mesmo muito difícil. Levei o peso equivalente ao do meu irmão (para lhe poupar a viagem) e, tudo junto, eu, a bicicleta e o meu irmão, são 150kg que tenho de transportar. Nunca sofri tanto na vida. Subir a estrada da Lagoa Azul com tanto peso é realmente muito puxado."
A mulher de Miguel não se queixa mas ele sabe que tem feito falta em casa. Treina de manhã, treina ao final do dia, treina aos fins-de-semana de manhã. Nos últimos três meses andou de um lado para o outro por causa da construção da bicicleta, entre o Algarve e Coimbra. O telefone toca com novos apoios, perguntas, situações, imprevistos. É como um trabalho a tempo inteiro, sendo que ele não tirou uma licença. Nem se percebe bem como consegue, mas para ele não há impossíveis. A partir do momento que se compromete... a coisa dá-se.
E a coisa está mesmo prestes a dar-se. Faltam 7 dias para o grande dia. No próximo domingo, 29 de Setembro, Miguel e Pedro vão completar o seu primeiro Half IronMan juntos. Pergunto se tem algum objectivo de tempo para cumprir. Miguel sorri e responde: "Se me perguntasses isso há uma semana diria que queria acabar em 6 horas e meia. Agora, e depois de ter feito aquele treino duríssimo, digo-te que o meu objectivo é só mesmo acabar. Também tenho aprendido a desfrutar do desporto sem ter de ser o melhor da minha aldeia. Quero divertir-me com o meu irmão e aproveitar o privilégio de poder estar com ele tantas horas seguidas. E homenagear os meus pais, que são o meu grande exemplo. O nosso grande exemplo."
Boa sorte, rapazes! Estamos a torcer por vocês.