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Cocó na fralda

Cocó na Fralda

Peripécias, pilhérias e parvoíces de meia dúzia de alminhas (e um cão).

Os Papa-Léguas #8: Iron Brothers

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Faltam 7 dias para o grande dia. No próximo domingo, 29 de Setembro, Miguel e Pedro vão completar o seu primeiro Half IronMan juntos. Para quem não sabe, o Half IronMan é uma prova de triatlo que consiste em fazer 1,9km a nadar, 90km de bicicleta e 21km a correr, ou seja, metade das distâncias do Full IronMan (3,8+180+43km). Para quem também não sabe, Pedro tem paralisia cerebral e é Miguel, o seu irmão mais velho, quem vai transportá-lo nas três modalidades. Eles são especiais. Eles são determinados. Eles são super-atletas. Eles são os Iron Brothers.

Tudo começou com a água. Os pais do Miguel queriam que ele soubesse nadar e, aos seis anos, meteram-no no Algés e Dafundo. Aos oito, e apesar de andar ali contrariado, fez uma prova interna de natação que ganhou. E foi então que o convidaram para a competição. Ainda sem pinga de paixão, Miguel aceitou o convite. Sempre foi competitivo e aquele era o incentivo que faltava. Pouco depois, estava mais do que convencido. Tão convencido que os pais passaram da ameaça "se não fizeres isto obrigamos-te a continuar na natação" para a oposta: "se não fizeres isto tiramos-te da natação" (os pais que nunca usaram o velho truque da ameaça que atirem a primeira pedra).

Miguel especializou-se em Mariposa, nos 100 e 200 metros. Chegou a ficar em segundo lugar nos Nacionais em Mariposa. Treinava 5 horas por dia. Mas, aos 14 anos, uma lesão num ombro, que teimava em não passar nem com fisioterapia, e que o fez passar um ano a treinar um mês e parar fê-lo dizer "basta". Só há pouco tempo soube o nome do problema que o afastou das pistas: conflito subacromial. Nos tempos que se seguiram, dedicou-se a experimentar um sem número de desportos, mas sem nunca lhes dar a importância que tinha dado à primeira modalidade. "Joguei ténis, fiz motocross, kung fu, rugby...  dos 14 aos 23 ou 24 anos andei a saltitar mas nunca fiquei parado. A verdade é que o desporto sempre fez parte da minha vida. Posso mesmo dizer que faz parte do meu ADN: o meu pai foi nadador e campeão nacional de ténis de mesa, o meu avô foi nadador... e para mim o desporto é mesmo essencial."

Entretanto, e continuando com a cronologia exclusivamente desportiva, Miguel meteu-se no crossfit de competição e, três anos depois, teve uma compressão na coluna que o obrigou a ficar 6 meses sem levantar pesos. "Pensei: vou aproveitar para trabalhar a minha debilidade no crossfit, que é a resistência. Faltava um mês para o triatlo de Oeiras quando a minha amiga Rita Machado me desafiou a participar. Nunca tinha feito um triatlo. Mas fui". Foi, fez um tempo dos diabos e, claro, quis mais. Uns dias depois estava a inscrever-se no Half IronMan de Cascais. "Comecei a treinar com o Pedro Almeida (do Treino em Casa), tinha a expectativa de terminar a prova em 6h30 e, afinal, terminei em 5h39." 

Enquanto se encontrava a treinar para a prova, que era em Setembro de 2018 e, de férias para o Algarve com a mulher, o filho, o irmão Pedro e a irmã Catarina e o marido, Miguel recebeu um vídeo que a amiga Rita Machado enviou, em que dois irmãos ganham o slot para o IronMan do Hawai (os irmãos Pease). Mal acabou de ver o vídeo, Pedro exclamou um: "Também queria!". Miguel, que nem sabia se conseguia terminar um Half IronMan sozinho (quanto mais acompanhado), respondeu: "És maluco!" Depois de terminar o seu primeiro Half a resposta mudou para um promissor "Se calhar vamos!" (que, na verdade e para quem o conhece, era já um categórico "É claro que vamos!")

Uns dias depois estavam os dois juntos, pela primeira vez nestas andanças, no super sprint "My LX Triathlon Experience", em Algés. "Fizemos juntos a natação e a corrida. A bicicleta fiz sozinho. Foi uma primeira experiência, para ver como corria. Correu bem e o Pedro continuava motivadíssimo."

Foi então que criaram o nome, o logotipo, a página, o conceito. Seriam os Iron Brothers. 

Quando começou a treinar para a prova que agora se aproxima, Miguel percebeu que tinha de melhorar a natação. Para isso, começou a treinar com o CNATRIL (Clube de Natação e Triatlo de Lisboa). "Além da natação, comecei a dar voltas de bicicleta de 110, 140km com eles. Custou-me deixar de treinar com o Pedro, que além do mais é meu amigo, mas sentia que rendia mais a treinar com uma equipa que, toda ela, estava envolvida no mesmo objectivo. Comecei a treinar com os melhores no triatlo em Portugal, o que dá uma motivação brutal." Os treinos foram aumentando de intensidade até às 25 horas por semana. "O meu treinador, Hugo Ribeiro, foi importantíssimo nisto tudo. Ele é daquelas pessoas que acredita em nós, muito mais do que nós próprios. Tem sempre uma palavra de incentivo e de tranquilidade. Foi graças a ele e à equipa que consegui fazer tudo isto."

Depois daquele primeiro Half IronMan de Cascais em 2018, Miguel fez o Setúbal Triathlon em 2019 ("Foi muito duro. Foi tão duro que já me inscrevi para ir outra vez para o ano"), e o Triatlo Longo de Caminha, em Junho deste ano. Com o irmão, fez duas meias-maratonas, 1 triatlo super sprint, 1 sprint e uma maratona (Maratona de Aveiro). Pergunto-lhe se costuma comover-se. "Não. Excepto na maratona de Aveiro. Tinha prometido ao Pedro que ele ia acabar a prova a pé. E assim foi. Tirei-o da cadeira e cortámos a meta juntos, ele apoiado a mim. Aí chorei. (silêncio) Aí chorei mesmo."

Mas, afinal, quem é o Miguel e quem é o Pedro e que aventura é esta?

Miguel tem, como se disse logo no início deste texto, 33 anos. Lisboeta de gema, tornou-se advogado, como o pai. É casado há 4 anos com a Maria, têm um filho com 3 anos, o Manuel. Cresceu com dois irmãos mais novos: Pedro e Catarina. A paralisia cerebral do irmão, de 31 anos, nunca foi tema para nada. É só uma condição. "O meu irmão percebe tudo o que o rodeia. Não anda, mal mexe os braços, fala com dificuldade (apesar de eu entender tudo o que diz), mas tem um enorme sentido de humor, e é muito inteligente. É tão inteligente que usa aquilo que tem para ter aquilo que quer." A condição de Pedro, porém, pode bem ter sido a salvação da sua família nuclear, afirma Miguel: "Acho que se não fosse o meu irmão Pedro nós éramos todos uns idiotas. Às vezes as pessoas com algum conforto financeiro tornam-se auto-centradas, arrogantes, completamente alheadas daquilo que realmente interessa. Estou em crer que o meu irmão nos trouxe sabedoria. E o coração no lugar certo."

Pedro passa os dias num centro da APCL (Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa). A associação depara-se (como tantas) com dificuldades financeiras e tem umas carrinhas velhas, sem ar condicionado, que transportam os utentes. A luta do Pedro tem sido, ao longo dos anos, a de pedir dinheiro ao pai e aos amigos do pai para ajudar a APCL a renovar a frota ou para outras melhorias que podiam ser feitas. Quando Miguel fez o primeiro Half IronMan (ainda longe de imaginar que havia de se meter a fazer uma prova com o irmão), pediu 112€ (o equivalente à soma dos quilómetros feitos entre a natação, o ciclismo e a corrida) a várias empresas para apoiar a causa de Pedro. Em troca prometia levar o logótipo das empresas no seu fato. Correu bem. "Tão bem que no dia da prova eu parecia um palhaço, todo cravejado de logótipos. Conseguimos angariar 4 mil euros."

A missão dos Iron Brothers tem sido, além de treinar, a de contar a sua história. Por um lado, querem mostrar que a paralisia cerebral não tem de ser um entrave a coisa alguma, por outro lado querem ter um papel de inclusão das pessoas com deficiência no desporto, despertando consciências. Mas querem mais. Querem angariar fundos para ajudar a APCL, querem criar uma associação que, em breve, possa ter 20 canoas, 20 cadeiras de correr e 20 bicicletas para que 20 pessoas com deficiência possam participar em futuras provas. Querem criar um podcast que conte a história do triatlo em Portugal. Querem continuar a participar em eventos desportivos e a levar o nome Iron Brothers mais longe, evoluindo para novos projectos. Para o ano, já há várias ideias, nomeadamente fazer o IronMan (o completo) em Barcelona (mas ainda estão à espera de autorização). E, claro, o ultimate goal seria participar na prova-rainha das rainhas: o IronMan do Hawai (o berço da marca IronMan, desde 1978). Há tanto para fazer, tanto para conquistar: "Acho que esta foi a oportunidade de o Pedro passar a sua mensagem. De participar em algo que é muito mais do que pedir dinheiro ao pai ou aos amigos do pai para ajudar a associação onde passa os dias. De se envolver. De perceber que a paralisia cerebral não o define e que pode mais do que imagina. Porque isto para mim é duro mas para ele também. É verdade que eu é que faço a força, eu é que nado, pedalo, corro e ele parece que vai ali na boa. Mas não. Ele vai em esforço. São muitas horas na mesma posição, ao sol, ou ao frio, ou à chuva, ou ao vento."

Para a prova que está mesmo, mesmo à porta, os Iron Brothers quiseram construir uma bicicleta de raiz, inspirada na bicicleta dos irmãos Pease, já que foram eles que espoletaram tudo isto. "Nós não podíamos ter uma bicicleta que tivesse a cadeira atrás porque o Pedro não consegue comer nem beber sozinho. A bicicleta tinha de permitir que eu estivesse à distância de um braço dele. Só que mandar vir uma custava perto de 20 mil euros. Era impossível. Então lançámos um pedido de ajuda e fomos contactados por duas pessoas que disseram que faziam. Escolhemos o Rodrigo Coelho que, além de desenhar, trabalhava na fábrica que faz as bicicletas da Decathlon. Depois foi preciso procurar apoios. E tivemos muitos, felizmente. O Hospital da Luz ofereceu 4 mil euros para a bicicleta, porque era esse o valor que estimávamos que custasse. Afinal custou bem mais..."

Miguel é perseverante. Insistente. Persistente. Há quem lhe chame teimoso. O certo é que não desiste. Perseguiu todas as empresas de que se lembrou ao longo de meses. Tocou a todas as portas. Várias vezes. "Todos os dias dedicava uma hora do meu dia para isso." Ai de quem lhe diga que não consegue isto ou aquilo. É certo e sabido que vai conseguir. Nos últimos três meses, a sua vida tem sido uma loucura, para conseguir ter a bicicleta pronta a tempo. Infelizmente os desenhos que eram para ter ficado prontos em Abril só lhe chegaram em Agosto e só então se começou a sua construção. Só há duas semanas é que Miguel conseguiu ir fazer o treino com a bicicleta nova e terá sido o dia mais duro da sua vida: "Não sou nada de me queixar mas foi mesmo muito difícil. Levei o peso equivalente ao do meu irmão (para lhe poupar a viagem) e, tudo junto, eu, a bicicleta e o meu irmão, são 150kg que tenho de transportar. Nunca sofri tanto na vida. Subir a estrada da Lagoa Azul com tanto peso é realmente muito puxado."

A mulher de Miguel não se queixa mas ele sabe que tem feito falta em casa. Treina de manhã, treina ao final do dia, treina aos fins-de-semana de manhã. Nos últimos três meses andou de um lado para o outro por causa da construção da bicicleta, entre o Algarve e Coimbra. O telefone toca com novos apoios, perguntas, situações, imprevistos. É como um trabalho a tempo inteiro, sendo que ele não tirou uma licença. Nem se percebe bem como consegue, mas para ele não há impossíveis. A partir do momento que se compromete... a coisa dá-se. 

E a coisa está mesmo prestes a dar-se. Faltam 7 dias para o grande dia. No próximo domingo, 29 de Setembro, Miguel e Pedro vão completar o seu primeiro Half IronMan juntos. Pergunto se tem algum objectivo de tempo para cumprir. Miguel sorri e responde: "Se me perguntasses isso há uma semana diria que queria acabar em 6 horas e meia. Agora, e depois de ter feito aquele treino duríssimo, digo-te que o meu objectivo é só mesmo acabar. Também tenho aprendido a desfrutar do desporto sem ter de ser o melhor da minha aldeia. Quero divertir-me com o meu irmão e aproveitar o privilégio de poder estar com ele tantas horas seguidas. E homenagear os meus pais, que são o meu grande exemplo. O nosso grande exemplo."

Boa sorte, rapazes! Estamos a torcer por vocês.

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Acompanhem as aventuras dos Iron Brothers AQUI ou AQUI.

Os Papa-Léguas #7 (João Santos)

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João Santos tem 34 anos e nasceu em Trancoso. Aos 30 atingiu o auge. Só que não foi um bom auge. Aos 30 anos, subiu para a balança e ela, que tinha marcado 150 quilos há poucos dias, deu erro. Dito de outro modo, a balança tinha deixado de conseguir pesá-lo. Não tinha quilos programados que chegassem para tanto.

João Santos sempre foi obeso. Ele e os pais. O problema não era genético. Era mesmo cultural. Em casa, comer bem significava comer muito. Fritos, enchidos, carne com fartura, massas, arroz, feijão. Doces. Todos os dias. Muito. Em criança, não se lembra de se sentir triste com a aparência. Havia quem gozasse, claro, há sempre. Mas o seu tamanho também impunha algum respeito, pelo que raras foram as vezes em que alguém pisou o risco. Cresceu com a alcunha de "João gordo". Mais tarde alguns, mais diplomáticos, substituiram o cognome "João Gordo", ostensivamente ofensivo, por um mais simpático "Big John".

Big John sempre praticou desporto. Mas não chegava para contrabalançar o que comia. De resto, gostava de ter seguido a área de Desporto mas falhou nos pré-requisitos. Acabou por estudar Contabilidade no Politécnico da Guarda. Depois, fez uma especialização em Gestão na Universidade da Beira Interior. 

Aos 18 anos, a vida ofereceu-lhe um duro golpe. O pai, que já era doente (tinha, entre outros problemas de saúde, uma fístula numa perna que não havia meio de sarar), morreu-lhe nos braços no dia em que foi ao Hospital de Coimbra fazer exames: "Depois da consulta, fomos almoçar num restaurante com o meu padrinho. À saída, o meu pai estende a mão ao meu padrinho, para se despedir, e eu percebo que ele perdeu as forças e começou a cair. Agarrei-o mas pesava mais de 100 quilos. Acabámos os dois no chão, ele morto nos meus braços. Ainda chamámos o INEM mas já não havia nada a fazer. Tinha tido um enfarte fulminante."

O acontecimento dramático podia ter sido um factor decisivo para que João decidisse inverter o rumo da sua vida. Mas não foi. Sempre tinha comido mal e aos 18 anos não tinha ainda a maturidade suficiente para tomar essa importante decisão. Foi aos 30. Com essa idade, vestia o número 70. As compras tinham de ser feitas no El Corte Inglés, na secção dos tamanhos grandes. "Adorava roupas de marcas baratas mas nunca havia nada que me servisse. Tinha de vestir de marcas como a Gant, que tinha números enormes, mas caríssimos."

Na lista dos seus erros alimentares contavam-se coisas como sobremesas diárias, 1 litro e meio de refrigerantes por dia, cereais açucarados aos quais ainda juntava açúcar, além de almoços e jantares fartos e muitas vezes repetidos. Ao ver a mãe doente com um cancro (possivelmente causado também pela obesidade), começou a ler sobre alimentação. Começou a interessar-se teoricamente pelo assunto. A querer saber mais sobre nutrientes, calorias, hidratos de carbono, proteínas, massa muscular, massa gorda. Um dia, decidiu-se. "Pedi à minha mãe: a partir de agora, só quero bife com salada ou peixe com legumes. Não quero mais batatas, arroz, massa. E basta de fritos e molhos." Foi em Setembro de 2013.

A mãe, sempre que podia, incluía o arrozinho, a batatinha, a massinha. João zangava-se umas vezes, outras não dizia nada, mas nunca lhes tocava. A partir do dia em que tomou a decisão, João Gordo começou também a fazer caminhadas. Todos os dias depois do jantar. Uma hora. Uma hora e meia. Mesmo quando chovia. E chove muito em Trancoso. Mesmo quando estava frio. E faz muito frio em Trancoso. Começou por caminhar, depois arriscou-se a correr. Uns metros, primeiro. Um quilómetro, depois. Vários, um dia.

Em Julho de 2014 estava seco como um bacalhau. Tinha perdido 70 quilos em 10 meses. Sozinho. Sem recurso a nutricionistas ou personal trainers. Nessa altura já corria a sério, já tinha participado no seu primeiro trail (Aldeias do Mondego, 20km). Os amigos, quase todos migrados ou emigrados, quando regressaram a Trancoso em Agosto desse ano para as férias de verão, não o reconheceram. "Tive de me apresentar aos meus amigos. Ninguém sabia quem eu era." João pesava (ainda pesa) 80 quilos e mede 1,83m.

Quando a mãe faleceu, nesse Agosto de 2014, entregou-se de alma e coração (e corpo, sobretudo) ao trail. Fazia provas todas as semanas. E já fez muitas, entre elas: Os Ultrapicos da Europa, em Espanha (55Km + 5500m de desnível positivo), o trail Oh Meu Deus (100Km), o Ultra Sicó. Este ano ia fazer o UTAX (110Km) mas teve de parar aos 25Km para ajudar um amigo que estava em hipotermia. "Estávamos um sítio sem rede e fiz diversas chamadas para o 112 que caíam constantemente porque, com os fogos, as comunicações estavam afectadas. Estive mais de uma hora à espera da ambulância, de maneira que acabei por decidir não continuar a prova e acompanhar o meu amigo." Ainda para este ano tem como objectivo atingir os 2500km corridos (quando conversámos ia em 2150km) e para o ano quer fazer muitas provas, entre elas os 200 km no Oh Meu Deus. 

A mudança na sua vida foi tão grande, tão absolutamente gigante que João, ex-Gordo, ex-Big John quis ajudar outros a alcançarem o mesmo objectivo: uma vida mais saudável, com desporto, com o seu exemplo a servir de farol. Foi assim que nasceu o GDT (Grupo Desportivo de Trancoso): "Em Trancoso, não havendo futebol, não havia mais nada. E eu quero tornar o atletismo uma tradição em Trancoso. O GDT nasceu há um ano e meio e o primeiro objectivo era mesmo pegar só na vertente competitiva. Formar atletas. Mas os jovens só querem ir para o futebol e começaram a aparecer muitas pessoas que queriam ter uma actividade física mas não tinham onde a praticar. Esse grupo cresceu muito. São hoje 75 pessoas. Tenho também ateltas com o mesmo problema que eu, que estão a perder muito peso, o que me deixa muito satisfeito. O GDT é livre, não há pagamento, é uma actividade voluntária. Acho que espalhar o que me aconteceu é o maior pagamento que posso ter."

E o que foi que lhe aconteceu, afinal, com estes 70 quilos perdidos? "A auto-estima melhorou muito. Eu não me sentia mal antes, mas não nego que me sinto muito melhor agora. Antigamente, quando fazia uma abordagem a uma rapariga, eu era o coitadinho. Avançava mas sempre a medo, já à espera da rejeição. Depois de emagrecer senti: 'eu agora sou o prémio. Se alguém quiser vai ter que lutar.' Agora já não vêm a tempo, que já tenho a minha namorada... (risos)". Mudou - e muito - o número que veste (passou de um 70 para um 42). Mudou a vida que leva - antes absolutamente sedentária, hoje perfeitamente frenética. Mudou tudo o que come. Era louco por lasanhas, pizzas, francesinhas. Hoje nem sequer lhe sabem bem. 

A mensagem que deixa é uma e só uma: "É possível. Sem clínicas, sem comprimidos, sem milagres. Com muita força de vontade. Com muito trabalho. Com muita persistência. Acreditem em mim: é possível! Basta querer."

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Os Papa-Léguas #6

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 Foto: Raquel Brinca, HUG

 

 

Olhando para ela, ninguém diz. Franzina, loira, de olho verde. Olhando para ela, sem se saber do (tanto) que é capaz, dir-se-ia que é delicada, frágil, até. E no entanto...

Rita Manso tem 46 anos e já corre há muito mais tempo do que este tempo em que correr se tornou moda. Sempre foi desportista mas certo dia, em 2003, o irmão desafiou-a a ir correr com ele, em Monsanto, Lisboa. Eram para ser só uns 5 ou 6 km mas ela correu 10 sem pestanejar. O irmão Francisco, que já corria muito, alvitrou: "Se consegues correr 10km com essa naturalidade, está na hora de fazeres uma Meia Maratona." E ela, que sempre gostou de desafios, aceitou. Treinaram juntos e correu bem. Quando terminaram, ambos viram o anúncio à Maratona de Lisboa, que ia acontecer duas semanas depois. Ambos viram mas nenhum comentou com o outro. Três dias antes da prova-rainha, Francisco ligou à irmã: "Sabes que daqui a três dias vai haver a primeira maratona em Lisboa?" Ela sorriu. Sabia. Mas de pouco lhe interessava. Ele lançou a escada: "E se nós lá fôssemos correr só 17km ou 21?" Nem foi preciso insistir muito.

Passados três dias, lá estavam os dois manos Manso. "Chovia torrencialmente. Havia pouquíssimos participantes, aí uns 50. Na rua, ninguém. Desolador. Mas nós lá fomos. Aí ao quilómetro 12 apareceu um fotógrafo, no meio do nada. Os dorsais tinham o nosso nome e nós tirámos a foto, todos contentes. [ver foto em baixo] Quando continuámos a corrida, comentámos um com o outro: epá, agora é chato. Já temos a foto oficial e não acabamos isto? E pronto. No fundo, nós só precisávamos de uma desculpa." E assim, a 7 de Dezembro de 2003, Rita Manso fazia a sua primeira maratona, com o tempo de 4 horas e 50 minutos. Como quem vai só ali num instantinho. Sem treino praticamente nenhum. Sem esforço. Sem géis energéticos ou qualquer suplemento. "Foi uma loucura, hoje sei. Uma inconsciência. Mas a verdade é que fizemos. E não custou assim tanto, para dizer a verdade. Acabei fresca. Não tínhamos ninguém à nossa espera porque ninguém sabia que íamos fazer aquilo. Nem nós! Mas senti-me o mais feliz possível."

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A primeira de muitas maratonas, em 2003, feita como quem vai só ali dar um passeio no parque

 

A partir daí, nunca mais parou. Começou a correr com disciplina e a participar em maratonas. Os amigos (que hoje quase todos correm) achavam que ela não estava boa da cabeça. "Sugeriam que fizesse terapia. Falavam entre eles e depois vinham, com cuidado, falar comigo, a aconselhar-me a procurar ajuda. Não compreendiam." Mas, como ela não parava nem acedia a consultar um especialista, aprenderam a aceitar e, por fim, desfrutaram do prazer de a apoiar. "Quando fui fazer a maratona de Londres pela primeira vez um grupo de 20 amigos acompanhou-me. Fizeram um cartaz gigante, e pronto, redimiram-se de anos de incompreensão."

Para que se tenha uma ideia da sua paixão galopante, em 2007 fez 3 maratonas, em 2008 duas, em 2009 quatro, em 2010 oito (uma delas com 80km), e a partir daí foi sempre às oito, dez, doze de cada vez (com várias ultramaratonas pelo meio), excepto em 2015 que se "limitou" (entre muuuuitas aspas) a duas maratonas.

De todas, gosta de destacar a de Nova Iorque, uma das grandes (não em tamanho, que são todas iguais, mas em apoio do público e pelo facto de ser... Nova Iorque). Mas também a Comrades, na África do Sul. "São 89km, com muito desnível. Para eles é um life-achievement [a conquista de uma vida], vêem-se famílias inteiras a participar e o mais aplaudido é o último. Adoro. Já fiz duas vezes. Assim como a Two Oceans, que são 56 km, também na África do Sul, e que também já fiz duas vezes. Linda."

E como quase sempre acontece com quem corre, chega uma altura em que aparece o desejo de abraçar outros desafios. E é preciso não esquecer um detalhe importante. Rita vive com Tiago Dionísio. Lembram-se dele? Esse mesmo, o homem que já fez mais de 500 maratonas e que estreou a rubrica Os Papa-Léguas aqui no blogue. Ora, quando se junta a fome com a vontade de comer... dá banquete na certa. E o banquete destes dois é ora correr, ora nadar, ora pedalar, ora fazer tudo seguido e em grande. Sempre em grande.

Como daquela vez em que o Tiago inscreveu a Rita para participar com ele num projecto de solidariedade social na África do Sul chamado Unogwaja Challenge. Basicamente, a prova visa homeagear Phil Masterton-Smith, um jovem (com 19 anos, na altura) que queria muito fazer a ultramaratona Comrades mas vivia em Cape Town e não tinha dinheiro para pagar o bilhete de comboio até Durban (onde a prova começa). Então, ele fez o percurso de mais de 1660km de bicicleta, ao longo dos 10 dias anteriores à prova e, no 11º dia, participou na Comrades conseguindo chegar à meta em 10º lugar. Assim, o Unogwaja Challenge reúne 12 participantes do mundo, escolhidos a dedo, para fazerem os cerca de 1700k de bicicleta que separam Cape Town de Durban e, no 11º dia, correrem a Comrades, tal e qual como Phil Masterton-Smith. A prova visa angaridar dinheiro para instituições que fazem realmente a diferença na vida de crianças vítimas de abusos e abandono, na África do Sul.

Rita nunca pensou que fosse escolhida. Mas foi. "O Tiago tinha feito no ano anterior e eu tinha visto o que ele tinha sofrido. Pensei: 'nunca na vida'. Pois. Mas lá fui. Fazíamos cerca de 200km por dia de bicicleta. Começávamos às 6h da manhã e terminávamos por volta das 17h. Sofri horrores mas, quando vi um dos abrigos para os miúdos, que não tinha mais do que paredes e tecto, pensei: a que propósito é que eu tenho a lata de dizer que me doem as pernas e o rabo, quando estas crianças já passaram por dores inimagináveis, vivem um desalento total, sem qualquer horizonte? E assim fiz o percurso sem pensar em mim, mas sempre focada neles. Um dos objectivos era oferecer bicicletas a uns miúdos que levavam duas horas para chegarem à escola, a pé. Se tivessem as bicicletas a viagem ia reduzir para uma meia hora. É difícil ajudar de forma mais directa do que esta. E eu tive essa oportunidade."

Quando chegaram ao destino, Rita sentia-se exausta. Mas, como já tinha feito a Comrades, decidiu armar-se em forte e ir a apoiar outros membros do Unogwaja que se estreavam e um deles que ia vestido de rinoceronte (com o calor e desconforto que se imagina). Ao quilómetro 50, as pernas começaram a falhar. Caiu redonda no chão.

 

Os Papa-léguas #5 (Bernardo Telo Rasquilha) e Mudar de Vida #5

Bernardo tem 44 anos e é missionário da Fraternidade Missionária Verbum Dei. Há umas semanas (mais concretamente no dia 7 de Maio) nadou 1900 metros, pedalou 90 Km e correu uma meia-maratona. Um triatlo com vista a angariar fundos para o projecto de formação de 14 missionários nos Camarões. Mas não só. Bernardo Telo Rasquilha sempre amou o desporto. E desafios. Sobretudo se forem positivos. Não é por acaso que já lhe chamam o "positive priest". Isto faz dele um dos "Papa-Léguas", rubrica que nasceu neste blogue para falar de quem se supera pelo desporto. Só que Bernardo também teve outra vida, antes de ser sacerdote, o que também lhe dá entrada na rubrica "Mudar de Vida". É o chamado dois-em-um. Mas já lá vamos.

Para começar, o começo - como convém. 

Bernardo é filho de uma lisboeta e de um alentejano. Os primeiros 20 anos da sua vida foram vividos numa espécie de mixórdia de locais. Na verdade, a sua vida toda tem sido assim. Nasceu em Lisboa. Até aos dois anos foi viver para o Alentejo, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Dos 11 aos 16 regressou ao Alentejo. Dos 16 aos 21, Lisboa novamente. E depois Porto. Mas também Itália, Angola, Cabo Verde, Brasil. E hoje Espanha. Mas, como missionário, talvez se possa dizer que Bernardo é do mundo inteiro.

Quem o conheceu em jovem poderá ainda hoje beliscar-se ao relembrar que se tornou sacerdote. Há factos que, de tão improváveis, podem obrigar quem se vê perante eles a pequenas flagelações que certifiquem tratar-se da realidade e não de um sonho qualquer. Bernardo jogou râguebi até aos 21 anos. Estava no 2º ano de Gestão, vivia sozinho em Lisboa, e gostava significativamente da noite, com tudo o que a noite associada à vida académica traz consigo. Bebia bem, divertia-se muito, dormia de dia, tudo aquilo que muitos de nós relembramos (com alguma saudade, até). Se lhe dissessem, nessa altura, que ia tornar-se missionário, era coisa para se ter atirado para o chão a rir.

Mas a realidade supera a ficção, tantas e tantas vezes. E aqui também.

Preocupados com o rumo do filho (que, diga-se a bem da verdade, não era propriamente digno de preocupação, era só o rumo mais ou menos típico), os pais pediram-lhe que fosse a um Encontro Internacional de Jovens, em Valência, realizado pela Fraternidade Missionária Verbum Dei. Bernardo respondeu que nem pensar, já tinha férias combinadas, que raio de ideia era aquela. Mas o pai pediu-lhe com algum dramatismo, quase como uma súplica, e - já se sabe - um bom filho tem dificuldade em negar uma súplica paterna. Juntou três amigos do râguebi e foram. 

Separaram-se o mais depressa que puderam do grupo de jovens, que decidiram definir como "uns chatos" sem sequer se darem ao trabalho de os conhecer e preparavam-se para seguir caminhos distintos quando o pai de Bernardo voltou à carga e lhe pediu (em tom de suplica, de novo) que experimentasse ficar com eles apenas um dia. "Dá-lhes ao menos uma oportunidade". Bernardo, mais por bondade do que por vontade, assentiu. Mal sabia ele que a sua vida estava prestes a mudar radicalmente.

"Foi quando ouvi uma rapariga dar o seu testemunho. Ela não era missionária mas falou sobre como o amor de Deus a fazia mais feliz. E aquilo tocou-me porque eu vi que era autêntico. Até então a ideia que tinha era que a Igreja era moralista e que Deus era distante. Mas vi o brilho no olhar daquela rapariga e pensei: ela tem qualquer coisa que eu não tenho. E, a partir daí, fui à procura de respostas para aquela inquietação boa que surgiu." Um ano depois, Bernardo fez um retiro que o marcou de forma indelével. "Foi a primeira vez que senti que Deus não era abstracto. Eu não o vejo mas experimento o seu amor louco. Estava acostumado a que as minhas alegrias viessem de fora, de algo exterior a mim. Ali experimentei a alegria que nascia de dentro. Foi fascinante. Magnético."

Bernardo começou a animar um grupo de jovens e, entre as actividades que tinham, havia o voluntariado. Sentiu-se especialmente bem a fazer algo pelos outros. Tão bem e de modo tão intenso que começou a compreender que o seu caminho teria de passar por aí. Quando decidiu, por fim, enveredar pela vida missionária, os mais próximos levaram as mãos à cabeça. Só podia ter ensandecido. A mãe começou por achar precipitado mas acabou por - como fazem as mães - querer apenas que fosse feliz. A sua fé levou-a a apoiá-lo sempre. O pai enfiou-se no escritório a pensar e, depois de uma reflexão, entregou-lhe um livro com uma dedicatória especial que dizia, em traços gerais, que ele podia contar sempre com o seu apoio. Alguns amigos prognosticavam uma mudança de rumo mais rápida do que o diabo a esfregar o olho. "Não te dou nem 3 meses para estares de volta". Já lá vão 23 anos. 

Largou o curso de Gestão e fez o negócio da sua vida, entrando para outro tipo de Gestão, a de potenciar a espiritualidade humana, a de dar aos outros o melhor, fazendo-os encontrar também o melhor de si. Corria o ano de 1994. Começou a sua formação em Teologia, seguiu-se o mestrado também em Teologia e, depois, quando já era capelão no Porto, fez o curso de Psicologia. No seu caminho, passou por Espanha, Itália, Angola, Cabo Verde, Brasil, Portugal. Entre 2011 e 2016 foi formador de grupos de missionários em Madrid, dedicou-se à angariação de fundos para ajudar a suportar a comunidade e também dava aulas.

Este ano, deixou de ser formador. Apoia a paróquia em Madrid, dá aulas, e especializou-se na angariação de fundos. O ritmo intenso começou a fazer-se sentir. Bernardo, que tinha sido jogador de râguebi, acusou a falta do desporto. "Comecei a deixar de viver o momento presente - fazia uma coisa já a pensar na outra. Estava em stress e senti necessidade de fazer desporto a sério. Havia um missionários que começou a fazer maratonas e, contagiado por ele, em 2014 fiz a Meia-maratona de Madrid e adorei, principalmente porque me obrigou a uma preparação contínua. Funciono muito por metas e, a partir do momento em que me inscrevo, tenho mesmo de treinar. Voltar ao desporto ajudou-me a limpar a cabeça."

Pensou então fazer uma maratona. Mas os joelhos, muito massacrados por anos de râguebi, não se compadeceram da ideia. E então experimentou o triatlo. Em 2015 fez o Sprint (750 metros de natação/ 20 km de ciclismo/ 5 km de corrida), em 2016 completou o Olímpico (1500 metros de natação/ 45 km de ciclismo/ 10km de corrida). E, este ano, surgiu o Challenge de Lisboa. O objectivo? Fazer a distância de Half IronMan (1900 metros de natação/ 90km de ciclismo/ 21km de corrida) mas aliando o seu desafio pessoal à angariação de fundos para a sua comunidade, mais concretamente à formação de 14 missionários nos Camarões. Houve uma série de pessoas e empresas que gostaram do projecto e que quiseram aliar-se a ele, nomeadamente Carla Sacramento, atleta olímpica portuguesa que participou em quatro olimpíadas e foi campeã do mundo dos 1500 metros no Campeonato do Mundo de Atenas em 1997. A atleta gostou da ideia e disponibilizou-se para ser a coach de Bernardo. De destacar também o apoio do PaRK International School e da JLL que apoiaram desde o início a iniciativa e a causa missionária.

E assim foi. Depois de vários meses de treino, no dia 7 de Maio este "positive priest" (padre positivo) tornou-se um Half IronMan. E ficou mais perto de conseguir que se concretize o projecto "De África para o Mundo". Porque para este homem (que só é metade de ferro na parte desportiva, porque é de ferro por inteiro no que toca à vontade) não há impossíveis. Basta olhar para o seu caminho.

 

O que é o projecto?

O projecto “De África para o mundo” aposta na formação prática de 14 missionários em Yaoundé para que se dediquem a trabalhar com crianças e jovens locais, aos quais facultam apoio social, escola de valores e catequese, procurando, também, ajudas económicas e providenciar o ambiente oportuno para todos os que queiram ir para a universidade, defendendo a dignidade de cada um e ajudando a potenciar os seus dons e talentos ao serviço da sociedade. A Verbum Dei trabalha ainda na formação de líderes para que mais tarde possam, também eles, dedicar-se a trabalhar com crianças e jovens daquele país. “De África para o mundo” é um projeto de 2 anos que começou em Outubro de 2016 e termina em julho de 2018. Para o poder concretizar, a Verbum Dei necessita de fundos na ordem dos 24 mil euros.

 

Como ajudar?

Todas as ajudas serão bem-vindas e podem ser dadas através de donativos por transferência bancária (Millennium BCP (Portugal) / Titular: Fraternidade Missionária Verbum Dei / NIB 0033-0000-45476170404-05 / IBAN: PT50-0033-0000-45476170404-05 / BIC: BCOMPTPL) ou através da área de donativos do site da Verbum Dei, www.creaverbumdei.org, recorrendo ao sistema Easypay. Apoio importante será também acompanhar e partilhar a actividade do Bernardo na sua página de facebook (Bernardo Telo Rasquilha) – especialmente os posts sobre os treinos e outros pormenores relacionados com a sua participação no Challenge Lisboa.

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Os Papa-léguas #4 (Paulo Neto Leite)

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157. Eis um número que Paulo Neto Leite nunca vai esquecer. Foi este o peso máximo que atingiu, em 2006. Três pesados dígitos que foi acumulando por inércia, por preguiça, por gostar tanto de comer. "Fui deixando andar. Sou engenheiro químico, tinha horários desregrados, muito trabalho, comia mal durante o dia e depois quando chegava a casa comia alarvemente. E depois eu adoro cozinhar, ir à praça escolher, comer, beber, conversar à mesa. Enfim, foi uma espiral. Às tantas já é indiferente se pesas 120, 130, 150. Perdes o controlo. És gordo, pronto."

Teresa, a mulher com quem casou em 1997, foi assistindo à transformação com alguma benevolência. Afinal, o casamento é para manter, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, "não diz lá nada sobre a gordura e a magreza". As filhas, nascidas em 2000 e 2002, praticamente não conheciam o pai sem ser em formato king size. Era o seu pai gigante. 1,84m de altura e 157 quilos de peso. Um super-pai.

Paulo não se sentia propriamente mal. Bom, para apertar os sapatos era um caso sério. E sim, se fosse de fim-de-semana para um destino de praia, tinha de levar uns 3 fatos de banho: "Não podia dar-me ao luxo de levar apenas um fato de banho. Se por acaso se rasgasse, o que fazia? Só se fosse a qualquer lado pedir um toldo!" 

Em 2005 foi-lhe diagnosticado um tumor num testículo. Felizmente não era maligno mas foi a primeira vez que Paulo sentiu o peso pesar: "Tive muita dificuldade em sarar a costura da cirurgia. E foi então que me cansei. Decidi procurar ajuda e optei pela banda gástrica. No mês de preparação para a cirurgia é preciso ficar a dieta líquida. Emagreci 12 quilos e pensei: se calhar não faço a operação, não preciso. Mas felizmente fiz. Não ia dar para ficar a líquidos a vida toda."

Foi operado a 16 de Março de 2006 e esteve acompanhado, em todo o processo, por um cirurgião, um nutricionista e um psicólogo. Certa vez, em dia de festa de aniversário, havia na mesa o seu doce preferido: uma tarte de amêndoa por encetar, com uma fatia larga já partida, a olhar para ele. "Esperei que todos saíssem, sentei-me à frente da tarte e pensei: se não conseguir ficar aqui 15 minutos sem lhe tocar não vou conseguir levar isto para a frente". E ali ficou. A olhar fixamente para o objecto do seu desejo. Passados 15 minutos, levantou-se. "Acho que se tivesse ficado lá 16 minutos em vez de 15 tinha-me atirado à tarte! Foi uma violência!"

No final de 2006 já pesava 116 quilos. Por razões profissionais, foi com a família viver para São Paulo, Brasil. Entre comer fora, experimentar comidas novas, adaptar-se às novas rotinas... chegou aos 125 quilos. "Senti-me a derrapar. E não quis. Não, não vou deixar isto acontecer! E então comecei a correr. Lembro-me que fiz a primeira prova de 5km, no Brasil, em 2011. Achei que ia morrer. Passei o resto do dia deitado, a pôr gelo nas pernas."

A família voltou do Brasil em 2013 e Paulo, que continuava a correr, começou a fazer provas de 10km e em 2014 fez a Meia Maratona dos Descobrimentos. Pesava 103 quilos. Continuou a correr e a emagrecer até chegar aos 95, 96 quilos. Estava no bom caminho. 

"Há, porém, um momento que creio ter marcado a minha vida para sempre. Em Agosto de 2015, volto de férias, e quando me peso percebo que tenho 99, 9 quilos. Ou seja, já estava disparado outra vez. Praticamente nos 3 dígitos de novo. Passei-me. Foi o chamado 'life changing event'. Saí disparado para o computador, à procura de uma prova onde me inscrever, para me motivar a treinar. Encontrei o Triatlo de Cascais. E disse: é isto!"

Mal sabia ele que estava, de facto, a operar a mudança da sua vida.  

 

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Paulo Neto Leite não nadava há 20 anos. Comprou touca, óculos, inscreveu-se numa piscina. No fim dos primeiros 25 metros, achou que ia morrer. Faltava 1 mês para o super sprint do Triatlo de Cascais, que incluía nadar 300 metros, ou seja, 12 piscinas. Contratou um professor. Treinou a corrida e a bicicleta. E terminou a prova com uma alegria que se lhe agarrou ao corpo e à alma. A família foi toda mobilizada e estava lá, a gritar por ele como se aquele fosse o desafio da sua vida. E era. Era o primeiro de uma existência novinha em folha.

Quinze dias depois, em Setembro de 2015, fez o triatlo em Lisboa. 

E nunca mais parou..

Tornou-se membro da equipa de triatlo do Estoril-Praia. Passou a treinar todos os dias, sem descanso, sendo que em alguns destes dias treina duas vezes, duas modalidades diferentes. Com uma "agravante": mora na Marisol (margem Sul), treina no Estoril, trabalha no Aeroporto de Lisboa. Um triângulo que o obriga a uma ginástica suplementar: a de encaixar tudo na sua vida, sem esquecer a mulher e as duas filhas, parte fundamental de si e do sucesso da sua luta contra o peso: "O meu emagrecimento é um projecto de família. Estamos todos nisto. Costumo dizer que não mereço a mulher que tenho. Não só aturou o gordo como agora atura toda a minha louca rotina desportiva. Mas ela sabe que é importante para mim. E eu também procuro compensá-la... ainda na terça-feira fomos jantar fora e bebemos uma garrafa de vinho os dois. Também não sou Xiita!"

Não é, mas quase. Pelo menos tem uma disciplina quase radical. Acorda todos os dias às 5:15h da manhã. Às segundas, quartas e sextas faz natação e à noite bicicleta, em casa, nos rolos. Às terças e quintas corre. Algures na semana faz treino de reforço muscular e ao fim-de-semana tem os treinos longos ou as provas. Para conseguir esta super-gestão, tornou-se ainda mais organizado do que já era. Na véspera prepara tudo - e só quem faz triatlo sabe que há tanto para preparar (touca, óculos, fato de banho, chinelos, toalha, barbatanas, palas para as mãos; ténis, roupa de correr; calções reforçados para a bicicleta, sapatos de bicicleta, capacete, luvas, acessórios diversos, gadgets devidamente carregados, comidas, suplementos).

O seu rigor e a alteração que operou na sua vida fizeram com que hoje seja até um atleta patrocinado. "Não é incrível? A N10 Bike Shop patrocina-me. A mim! O tipo que pesava 157 quilos! Às vezes até eu fico incrédulo com tudo isto."

Paulo tem 46 anos, mede 1,84m e pesa agora 90kg. Tem o objectivo de chegar aos 83 mas não se percebe bem porquê. Está irreconhecível. É outro homem. Outro corpo, outra cara, outra alma.

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A sua relação com a comida será sempre uma relação complicada. Continua a gostar de cozinhar, ir à praça escolher, comer, beber, conversar à mesa. E sabe que tem uma adição, tal como se fosse álcool, droga ou jogo. É porventua mais tortuosa, porque nesses casos um dos segredos para a cura é nunca mais repetir. No seu caso, é imperioso que continue a conviver diariamente com o objecto da sua adição, por uma questão óbvia de sobrevivência. Só é preciso saber dosear. E graças ao acompanhamento de uma nutricionista e da sua força de vontade notável, tem conseguido fazê-lo. Mas sabe que a luta é para sempre. Se porventura engorda, a fotografia de fundo do seu computador passa logo a ser uma do tempo em que era obeso. Só para não que não haja dúvidas.

A vida mudou em muitas coisas. Na verdade, quando se lhe pergunta o que sentia antes não sabe dizer. Mas sabe dizer o que sente agora: "Perdi uma pessoa inteira, em peso. Perdi a minha mulher e mais um bocado. Até faço a comparação. É como se tivesse deixado de andar todo o dia com ela ao colo. Vestia o 3XL. Nunca ninguém me oferecia roupa. Sabiam lá que número oferecer! No outro dia fui comprar umas calças para treinar e tive de trazer o M, porque o L estava largo. Fiquei incrédulo! Durmo melhor, respiro melhor, brinco com outra energia com as minhas filhas. Posso ir para a praia só com uns calções na mala porque se acontecer alguma coisa... é só ir à loja mais próxima. E tudo isto tendo encontrado algo que me apaixona! Sou realmente um apaixonado pelo triatlo! Não é monótono, é intenso... entusiasma-me mesmo muito. E sim, sinto-me imensamente especial de cada vez que acabo."

O seu caso também entusiasma muita gente. Tem contagiado muitos a perder peso, outros tantos a meterem-se no triatlo. Escrevem-lhe pessoas de todo o mundo. O mais distante vive na Índia. Inspirado pelo seu caso, também deixou de ser obeso e já fez o primeiro triatlo. Numa palestra motivacional para a qual foi convidado, levou para o palco 15 garrafões de 5 litros. O equivalente ao seu peso perdido. 

 

Paulo vai fazer o primeiro Half-Ironman em Setúbal, no dia 9 de Abril (1900m a nadar, 90km de bicicleta, 21km a correr). Repetirá a proeza em Lisboa, no dia 7 de Maio. E de novo em Cascais, a 3 de Setembro.

Para o ano, será a vez de se atirar a um Ironman (3800m a nadar, 180km de bicicleta, 42km a correr).

O sonho é ir ao Ironman do Havai, que foi, de resto, o berço desta prova e para o qual é preciso tempos mínimos (muito apertados). O modo como ele fala do sonho revela que é quase certo que vai tornar-se realidade: "Eu hei-de fazer o Ironman do Havai. Tenho a certeza disso. Não é uma questão de acreditar. É uma questão de saber. Eu vou lá chegar!"

Olhando para a sua transformação... não fica qualquer espécie de dúvida.

 

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 Fotos: Raquel Brinca, HUG

Os Papa-léguas #3 (Nelson Barreiros)

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Sempre ouviu dizer que não podia praticar desporto. Na escola, as recomendações da mãe ao professor de Educação Física faziam-no temer saltos e piruetas, jogos de bola ou correrias. Nelson Barreiros, atropelado aos 5 anos, tinha ficado sem baço, e sem baço - dizia a mãe (que, depois de quase o perder, só o queria proteger) - não havia lugar para desportos. Cresceu assim, afastado da actividade física, certo de que o carro que o havia colhido em criança teria levado consigo parte de quem era, forçado a um sossego perpétuo. O médico, de resto, alertara a mãe para decisões vindouras: "Quando crescer, ele que escolha um trabalho de escritório..."

Nelson obedeceu. Estudou Gestão de Empresas, enfiou-se num escritório, casou, teve um filho. Pelo caminho, esqueceu-se um bocadinho de si. Fazia refeições fora de horas, pouco regradas para quem, como ele, estava obrigado ao sofá. Em 2006 apanhou um susto. Estava hipertenso, tinha problemas nas articulações, estava sempre cansado. Pesava 110 quilos. Era uma bomba-relógio.

Com um filho de 8 anos, sentiu que a vida lhe escorria pelos dedos. Falou com uma colega que lhe marcou consulta num endocrinologista. Além da dieta, o médico prescreveu caminhadas. E Nelson começou, assim, a mudar o rumo da sua vida. Em seis semanas perdeu 7 quilos. Durante as caminhadas, via os que corriam. E foi tentando acelerar o passo. Principiou a correr. E a gostar. O médico desdramatizou o drama da falta de baço, que o ensombrara durante toda a vida. Tomou o gosto pela corrida. Sentia-se bem. Foi aumentado o tempo de actividade, os quilómetros, a velocidade. Em 2009 decidiu participar na sua primeira corrida. Escolheu a mini-maratona (7km) que atravessa a Ponte 25 de Abril. E em 2010 fez a Corrida do Tejo, a primeira de 10km. "Lembro-me de estar a correr e de ver o pessoal a correr na direcção contrária. Eram os que estavam a fazer 20km. E eu a pensar: 'Nunca na vida!!!! Esta gente é doida!!!' E afinal..."

Afinal depois dos 10, veio a primeira meia-maratona, em 2012, e a primeira maratona, em 2013. Para a estreia nos 42km, Nelson escolheu a Maratona de Lisboa. Pesava então 87kg. Terminou em 4h54m, lavado em lágrimas. "É uma emoção brutal. Vir a correr de Cascais e acabar em Lisboa... pensar em todo o treino, em todo o esforço, em toda a disciplina... ver o meu filho na meta, o meu treinador aos gritos... foi muito emocionante. Mas muito duro também. Pensei: nunca mais faço a maratona! Acabou!"

Está bem, abelha. Ficou dois anos remetido às meias-maratonas e aos trails, mas era certo e sabido que havia de voltar. Entretanto, foi aprendendo muito. Sobre o funcionamento do corpo, sobre os ténis a usar, sobre a passada. Juntou-se a quem sabia do assunto, leu, informou-se, aperfeiçoou-se. Em 2015, decidiu que estava pronto para uma nova maratona. Mas, desta vez, queria fazê-la sempre a correr. Sem paragens ou caminhadas pelo meio. Para isso era importante perder os quilos que lhe faltavam. De 110 para 87 já tinha sido um enorme salto mas era preciso chegar ao peso ideal. Consultou Sérgio Veloso, um fisiologista, compreendeu as complexidades do metabolismo, aprendeu sobre nutrição. Emagreceu 7 kg em 2 meses e hoje exibe uns atléticos 77 kg. Foi também nesse ano que apostou forte no reforço muscular e nos alongamentos. 

Nelson é determinado. Rigoroso. Disciplinadíssimo. Focado. Metódico. Quando mete uma coisa na cabeça, não se desvia um milímetro. Alguns exemplos prosaicos, mas claros: na despensa de sua casa há coisas que não pode comer. Ou melhor, pode, mas não quer, para não voltar ao que foi. O armário está trancado e é o filho quem tem a chave. Para que nunca ceda à tentação. Na porta do frigorífico está afixada uma fotografia sua com 110 quilos. Para que nunca se esqueça. Sempre que alguma peça de roupa lhe deixa de servir, não a guarda. Oferece. E compra o número abaixo. Para que nunca haja roupa larga à espera de uma recaída. Antes, quando chegava à Fuseta, onde faz férias, o seu primeiro pensamento era: "onde é que eu vou almoçar bem?". Hoje, quando lá chega a sua primeira preocupação é: "onde é que eu vou treinar bem?"

Foi em Novembro de 2015 que fez a sua segunda maratona, no Porto. Encantou-se. Pelo percurso, pelo apoio das pessoas. E conseguiu cumprir o objectivo: correu do primeiro ao último quilómetro e terminou em 4h12m, com o detalhe importante de ter feito um split negativo, isto é, correu a segunda parte da prova mais depressa do que a primeira parte (o que significa uma gestão de esforço notável). Correu-lhe tão bem que em Fevereiro de 2016 estava a fazer outra, em Sevilha, como novo recorde: 3h55m. E em Novembro do ano que acabou de passar, mais uma: de novo a Maratona do Porto, e um novo recorde de que se orgulhar - 3h48m.

O homem que não podia praticar desporto. Que cresceu assim, afastado da actividade física, certo de que o carro que o havia colhido em criança teria levado consigo parte de quem era, forçado a um sossego perpétuo. A primeira comparação que me surge é a de um sedento a quem oferecessem um jarro de água fresca. Mas depois, pensando melhor, não é justa, a comparação. Porque se assim fosse ele correria do mesmo modo que o sedento beberia água: sofregamente. E não é esse o caso. Nelson não é sôfrego, não é inconsequente nem inconsistente. Ele traça metas e trabalha muito para lá chegar. Com cabeça. Com muita cabeça. 

Diz que a mulher tem uma paciência de santa para aturar tanto treino, tanta ausência, tanto tempo dedicado ao que começou por ser um desporto e acabou a ser uma filosofia de vida. O filho, hoje com 18 anos, não comenta a azáfama do pai. Acha que se orgulha de si? - pergunto. Nelson encolhe os ombros, naquela dúvida que sempre nasce nos pais quando os filhos se enchem de si mesmos, incapazes de reconhecer feitos paternos. De uma coisa tem a certeza: a sua vida desportiva foi muito importante a nível profissional. "Estou mais disponível para o trabalho, mais bem disposto, mais activo, com mais vontade de enfrentar novos desafios. Tal como me desafio com os quilómetros, parece que também no trabalho sinto esse desejo, de me continuar sempre a desafiar". E, claro, reconhece a importância da corrida na vida social, na auto-estima, no prazer inequívoco em inspirar os outros.

Para o futuro, quer continuar a correr. Continuar a saltar obstáculos, a quebrar barreiras. Sonha com provas míticas como Londres ou Nova Iorque mas também com uma outra meta: fazer uma prova de três dígitos. 

Nelson já pesou 110 quilos. Já se cansou só de se virar no sofá. Hoje é, sem sombra de dúvida, outro homem. Um homem num novo paradigma. Um novo Nelson que nasceu, deixando para trás um outro, a quem haviam sentenciado - erradamente - uma vida de sossego perpétuo. Que teria sido dele, se não o tivessem limitado assim? Nunca saberemos. O que importa é o que conseguiu fazer por si próprio, e a felicidade que alcançou. Duas vidas numa só vida não é para todos. 

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 Fotografias: Raquel Brinca, HUG

(camisola com estrela em lantejoulas: Aficionata)

 

 

E, para que se perceba, eis o antes e o depois. 

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Os Papa-léguas #2 (Catarina Portela Morais)

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Ninguém diria que por detrás daquele corpo franzino, de aparência frágil, a que se soma - para cúmulo do estereótipo da delicadeza feminina - um cabelo loiro e olho azul, se esconde uma mulher de ferro. A designação nem é essa, é mesmo "homem de ferro" (Ironman). Ou seja, por detrás daquela aparência angelical está, em bom rigor, um homem de ferro. Ele há coisas do arco da velha.

Catarina Portela Morais tem 38 anos, é advogada, e sempre praticou desporto: corrida, ginástica, equitação, natação, hóquei em campo. Depois, casou aos 22 anos, teve filhos de seguida (aos 25 já tinha três, hoje tem quatro), e ficou cerca de 10 anos sem fazer nenhuma actividade desportiva. "O meu marido era da selecção de Rugby, eu tinha de ficar com as crianças, de maneira que foi só quando ele saiu do Rugby, há 4 anos, que decidimos começar a correr. Íamos correr juntos e ele queria sempre que eu corresse mais. Mas tinha dores nos joelhos, nas pernas, não conseguia."

Foi então que contactou o conhecido treinador António Nascimento que lhe perguntou qual o seu objectivo. O objectivo da menina franzina, nessa altura, não era muito ambicioso: "Quero correr 10km numa hora, na boa. Sem dores." E assim foi. Começaram a fazer treinos de reforço muscular, ao sábado corriam no Jamor, tudo isto em Junho de 2011, um calor de ananases e ela a desfalecer pelo caminho. Os 10km fizeram-se, vieram os 15km, e António Nascimento lançou um novo desafio ao grupo que tinha começado os treinos ao mesmo tempo: "O vosso objectivo agora é a Maratona do Porto".

António Nascimento há-de ter percebido quem tinha à frente. A loirinha de olho azul podia enganar muita gente mas não conseguia enganar quem há muito treina atletas para as mais variadas provas. Ali havia garra. Havia determinação, perseverança, ganas de superação. Em Novembro de 2011, cinco meses depois de ter começado a correr, Catarina Portela Morais fez os 42,195 km no Porto, em 4 horas e 30 minutos. "Fui muito disciplinada, levava os treinos muito a sério. Lembro-me, por exemplo, que faltei ao casamento de um amigo porque tinha de correr 28km e não podia beber nem comer excessos. Estava mesmo focada. Levei os filhos mais velhos para torcerem por mim, acabei a chorar, adorei. Achei mesmo espectacular. Passados uns dias estava a inscrever-me na Maratona de Paris, que é em Março."

Na Maratona de Paris, 4 meses depois, Catarina conseguiu bater o seu tempo em 15 minutos. E em 2012 fez 3 maratonas, vários trails e ultra-trails como a Ultra-Maratona Atlântica Melides-Tróia ou o Ultra Trail de Serra D'Arga (completou os 53km em 9h30m). Pelo caminho, recomeçou a nadar: "Era uma forma de não massacrar muito os músculos entre corridas. Para não parar completamente, nos intervalos comecei a nadar."

E, se já nadava, por que não meter-se no triatlo? Foi o que lhe perguntou o treinador António Nascimento, esperto, a saber de ginjeira que aproximar a chama a um pavio curto dá incêndio na certa, e que Catarina era, toda ela, vontade de encarar novos desafios e obviamente vencê-los. E assim, em 2013, Catarina nadou 1900 metros, pedalou 90km e correu 21km, terminando o seu primeiro half Ironman em seis horas. "Correu muito bem e continua a ser a minha prova preferida de todas." 

Ora, depois de atingir o primeiríssimo objectivo, que era correr 10km, depois de conquistar a maratona (repetindo a prova várias vezes), depois de fazer trails e ultra-trails, depois de chegar ao fim do Half Ironman... estava-se mesmo a ver que havia de lhe dar a vontade de se atirar ao homem-de-ferro por inteiro. Afinal, Catarina Portela Morais não é mulher de fazer as coisas pela metade. A inscrição no Ironman de Florianópolis (Brasil) foi, por si só, uma aventura: "Éramos uns 10 amigos, que começámos a treinar juntos e que íamos juntos embarcar nesta aventura. Só que todos sabíamos a dificuldade de conseguirmos inscrever-nos. É preciso estar com o dedo pronto na precisa hora em que abrem as inscrições. A minha irmã estava incumbida de inscrever o meu marido, eu ia inscrever-me a mim. Fomos os únicos que conseguimos, do nosso grupo. As 2000 inscrições esgotaram em 8 minutos. Foi uma loucura!"

Inscrita, treinou durante um ano. Nadou, correu, pedalou muito. Acordava por volta das 5.30 da manhã para treinar, trabalhava, ia buscar os miúdos e tratava deles, e ao final do dia voltava aos treinos. Muitas vezes pedalava das 19h às 22h, em casa, enquanto via televisão ou ajudava os filhos nos trabalhos de casa. Aos fins-de-semana nadava na Praia da Torre (Oeiras), corria, pedalava. "Foi um ano muito chuvoso, lembro-me de acordar às 5.30/6h e de chover a potes... pensava: lá vou eu, acabada de sair da cama quentinha, correr debaixo desta chuva toda! Às vezes custava." Leu e aprendeu muito sobre nutrição. Percebeu que estar bem alimentada antes e durane a prova é boa parte da chave para o sucesso.

E no dia 25 de Maio de 2014, em Florianópolis, Brasil, Catarina Portela Morais nadou 3.800 metros, de seguida pegou na bicicleta e percorreu 180km, depois dos quais correu, nada mais nada menos que... uma maratona (42km). "Quando peguei na bicicleta, às 9h da manhã, pensei: 'só vou largá-la às 16h...' e senti um calafrio. Mas depois comecei a repetir mentalmente 'calma... relaxa... pensa na vida". Quando a larguei, calcei os ténis e comecei a correr tive a melhor sensação do mundo. Corri os 42 km, eu que tinha pensado que ia correr uns 25km e depois ia fazer o resto a andar."

Catarina terminou o Ironman num tempo fantástico: 13h48m (o limite para terminar a prova era de 17 horas) e tornou-se a 15ª mulher portuguesa a concluir o Ironman.

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Uma conquista impressionante. De relembrar o aspecto franzino e frágil (as aparências iludem). De relembrar que é advogada, que tem 4 filhos, que tinha então 36 anos. Que treinou em todos os intervalos que a vida lhe permitiu. Que se focou. Que acreditou. E conseguiu. 

Em Agosto de 2015, depois de mais um half Ironman feito em Junho em Inglaterra (e no qual fez parte da equipa do chef Gordon Ramsey, angariando muito dinheiro para solidariedade), Catarina Portela Morais começou a sentir-se mal. Tinha falta de ar, estava cansada. "Pensei: isto foi de ter ido ao MEO Sudoeste, já estou velha, deve ter sido do pó". Mas não. Exames depois de exames, descobriu-se que tinha uma embolia pulmonar. "Entrei em choque, no hospital. Estive a morrer e senti-me a morrer. Foi horrível." Houve logo quem se apressasse a apontar o dedo às corridas. "Isso não dá saúde, deve ter sido do exagero". Ela própria se pôs - e pôs aos médicos - essas questões. A resposta veio no sentido inverso. "O que me disseram foi que se eu não tivesse habituado o meu coração e os meus pulmões a uma actividade tão intensa, eles não teriam aguentado. E que o facto de correr e de fazer tanto desporto não tiveram qualquer tipo de relação com a embolia."

Os trombos que tem nas artérias pulmonares continuam lá. Não são removíveis cirurgicamente e não se sabe se podem libertar-se, provocando um sarilho tão grande ou maior do que o anterior. Por isso, Catarina está impedida de fazer desporto, pelo menos para já. Durante os primeiros 6 meses, nem vontade tinha. Estava demasiado cansada, assustada, grata por não ter ido desta para melhor. Nesses primeiros meses, fez a vontade ao corpo e deixou-se estar quieta sem sequer questionar. Mas, claro, quando há genuíno prazer no desporto e na sensação de superação que ele traz consigo, a vontade volta. E voltou. Está lá, acesa. E, quando fala no assunto, já não consegue esconder a tristeza que lhe vai dentro, só de pensar em nunca mais se propor a um desafio, nunca mais cruzar uma meta, nunca mais sentir a felicidade suprema da superação pessoal. "Para já os exames indicam que os trombos não estão a causar dano ao coração. Acho que tenho de arranjar um cardiologista que também corra, e que me perceba. (risos)".

Para já, não quer arriscar. Tem 4 filhos. Não é inconsciente. Mas é uma mulher de ferro. E é difícil dizer a uma mulher de ferro para vergar.

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 Fotos: Raquel Brinca, HUG

 

 

(esta é a segunda de muitas histórias de corredores que se contarão por aqui. Leia AQUI a primeira)

Os Papa-Léguas #1 (Tiago Dionísio)

Tiago Dionísio: 500 maratonas aos 42 anos

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Há quem coleccione cromos, selos, latas, pacotes de açúcar. Tiago Dionísio colecciona maratonas. Este ano, se tudo correr bem, irá chegar à 500ª maratona. Se para esta contabilidade contassem "apenas" as maratonas (42,195km) falávamos de 21097,5 Km corridos em 22 anos, o que daria uma média de quase 1000 km por ano. Acontece que nestas 500 maratonas que se propõe alcançar estão também as ultras. À data de hoje, Tiago correu 355 maratonas e 139 ultras. E quando digo "à data de hoje" é para levar à letra porque amanhã já o número pode ser outro. Afinal, Tiago Dionísio é um coleccionador de maratonas. E como qualquer coleccionador, quer sempre mais.

Tiago Dionísio sempre praticou desporto. Jogava futebol em Washington, onde viveu dos 13 aos 18 anos enquanto o pai foi colocado numa missão diplomática, mas gostava mesmo era de correr. Quando voltou a Portugal, foi com a família viver para a zona do Areeiro e começou a correr mais. Cada vez mais. "Quanto maior a distância, mais gozo me dava". Fez a primeira maratona, em Lisboa, com 20 anos. Terminou com 03h09m (se vos serve de comparação, dizer que o recorde do mundo da maratona está nas 02h02m e que aqui esta que vos escreve, corredora recente e tartaruga, concluiu a sua primeira maratona no ano passado com 04h18m). No ano seguinte, repetiu a Maratona de Lisboa e fez 03h04m.

Na faculdade (curso de Economia da Universidade Nova de Lisboa), os colegas achavam que era maluco. "Nunca fui muito de sair à noite mas também porque a minha prioridade era o desporto. Era muito diferente dos outros. Treinava todos os dias, não bebia álcool, deitava-me cedo, dava-me sobretudo com as pessoas mais velhas e não tinha muita paciência para a chamada vida académica." Não havia esta moda das corridas, esta febre que parece ter contagiado toda a gente. Tiago era uma espécie de extra-terrestre. Mas corre para quê? De quê? De quem? Ele encolhia os ombros. Nunca precisou de pertencer a grupos, a tribos, nunca precisou de ser compreendido ou sequer aplaudido. Ainda hoje, não partilha quilómetros nas redes sociais, nem fotos depois do esforço, nem coisa alguma. Ele não corre para provar nada a ninguém. Nem sequer a si mesmo. Corre por puro prazer, por necessidade, até.

"Nos primeiros anos corria sempre em Lisboa. Não tinha dinheiro para aventuras. Mas o meu primeiro salário serviu para ir à Maratona de Londres, em 1998." Ainda assim, não foi dessa que conseguiu reduzir o seu tempo. Só à 8ª maratona, em Paris, conseguiu quebrar a barreira das três horas, fazendo 02h52m. Estava criado o "monstro".

Não há como descrever, uma a uma, todas as provas em que já participou. Dizer porém (e só para que se perceba o tipo de atleta de que estamos a falar) que no ano passado correu 13 maratonas em 11 dias. Com viagens pelo meio e peripécias que o deixaram na linha da partida apenas a minutos do começo de uma nova prova. Há umas semanas voltou a repetir a proeza mas, desta vez, ainda mais louca: 12 maratonas em 11 dias, em Inglaterra. "No penúltimo dia corri uma maratona de manhã e depois fui com um amigo meu de carro fazer outra maratona que começava às 17h (tinhamos 3h até ao início da prova da tarde). Regressámos depois para fazer uma outra maratona no domingo no mesmo local onde tínhamos corrido no dia anterior de manhã." Parece mentira. Mas não é. Parece loucura. Mas para ele é tão natural como a sede.

Por falar em loucura, Tiago confessa que há 10 anos sim, fez uma loucura. Uma loucura que podia ter corrido ainda pior do que correu. "Fui correr a Comrades [89km na África do Sul] e quando terminei apanhei um avião para a Califórnia onde, no fim-de-semana seguinte, fui correr 160km em montanha. Estavam 40ºC, para aí metade dos participantes desistiu. As viagens de avião desidratam imenso e, com aquele calor, senti-me mesmo mal. Aos 100km pensei desistir mas nunca tinha desistido de nenhuma prova e então continuei. Percebi que estava mesmo mal quando fui à casa de banho e vi que o que saía tinha a mesma cor do líquido encarnado que eu tinha acabado de beber. Vomitei. Tomei analgésicos e meti-me num avião para Lisboa. Quando cheguei fui direito ao Hospital Egas Moniz, de onde só saí 2 semanas e meia depois. Tinha uma desidratação extrema e uma rabdomiólise [perda rápida de massa muscular]. Tomei 8 litros de soro por dia e quando saí do hospital mal conseguia andar."

Nunca mais repetiu a graça. "A maratona é uma distância equilibrada. Provas de 100km são razoáveis. Mais do que isso já começa a ser muito". Faz a Comrades todos os anos. Desde que fez a Two Oceans em 2005 (56km na Cidade do Cabo, África do Sul) tornou-se também uma prioridade. Entre muitas outras. "Já tenho todas as viagens marcadas no 1º trimestre do próximo ano."

Então mas e só corre? Não faz mais nada? Trabalha? Tem uma vida para lá de dar às pernas? 

A resposta - apesar de parecer impossível - é: sim. O homem trabalha (já trabalhou no BPI, no BESI, e hoje trabalha na Eaglestone, uma boutique de serviços financeiros), vive com a Rita (outra viciada em desporto), é padrasto de dois miúdos. Quando começou a namorar com a Rita (conheceram-se no Clube do Stress), muitos amigos previram um abrandamento nas corridas. Não podiam estar mais enganados. "Corro mais agora do que quando estava sozinho. Já fizemos juntos 54 maratonas. Ela compreende muito bem este meu estilo de vida porque também é o dela. É verdade que abdicamos de muitas coisas. A vida social é uma delas. Aproveito muitas provas ou treinos para pôr a conversa em dia com os meus amigos. Parte da minha vida social é passada a correr. Também não vejo televisão, não me lembro de ir ao cinema ou a concertos, quer por uma questão de tempo, quer pela questão financeira: parte importante do meu ordenado é gasto nas corridas e nas viagens para correr. Não há volta a dar. O desporto faz-me bem. Sou um corredor."

É verdade. Tiago Dionísio é um corredor. Se tudo correr bem - e vai correr - Tiago vai completar a 500ª maratona no dia 2 de Outubro, na Maratona de Lisboa. "Dizem-me que posso ser a pessoa mais nova no mundo com mais maratonas. Não sei..." O que sabe é que quer continuar a correr, depois de cumprido este objectivo. E tem já outro, na manga: "O meu sonho é fazer o Desafio 777: 7 maratonas, 7 dias, 7 continentes. Começa na Oceania, segue para a Ásia, sobe à Europa, desce ao norte de África, atravessa mares até à América do Norte, desce à do Sul e conclui a festa na gelada ponta do mundo, Antártida. Preciso é de arranjar 35 mil euros", diz com um sorriso. "E isso é bem mais difícil do que a prova em si". 

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Fotos: Raquel Brinca, HUG

 

Algumas curiosidades

Música: Nunca ouve música enquanto corre.

Gadgets: Não usa. Raramente treina com relógio e só usa o seu Garmin em algumas maratonas em que tem de controlar o tempo que faz, nomeadamente em maratonas que faz em dias seguidos.

Leitura sobre corridas: Já leu bastante mas hoje em dia já lê pouco sobre o assunto. "Já dedico muito tempo a correr e a preparar a logística das provas todas em que participo. Por isso, tento ler sobre outros temas para me distrair ou, se tiver algum tempo livre, aproveito para dormir..."

Clube do Stress: Entrou em 1993 quando ainda só havia no clube 4 pessoas que corriam regularmente. Hoje o clube tem mais de 150 pessoas.

 

(esta é a primeira história de uma série de histórias que aqui se contarão sobre corredores)